quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Aurora: Epílogo


AURORA
EPÍLOGO


 Essa é a história de uma aurora. De seu fim e de seu novo começo.

 Um dia, uma luz brilhou nos céus. Era forte e redentora, e ao seu lado houve outro brilho, tão forte quando.

 As luzes cresceram, e outras se juntaram. Brilharam, e pareciam que iriam tomar os céus em uma beleza sem par.

 Só que, de repente, a luz original cessou. As que sobraram ficaram perdidas, e muitas se afastaram. Parecia o fim de uma efêmera alegria.

 Eis que, um dia, uma nova luz chegou. Ela brilhava palidamente, mas se juntou às outras. E veio outra logo em seguida. E, de repente, as luzes voltaram a ficar bonitas.

 Só que veio uma nuvem púrpura, e ameaçou acabar com as belas luzes. Houve um clarão, e o pequeno conjunto de brilhos permaneceu em pé. E, com essa vitória, veio uma nova luz.

 Mas a nuvem continuava a invejar o que era belo. E voltou a atacar, desta vez parecendo tomar por completo a pequena aurora.

 Só que as luzes brilharam mais forte. Uma a uma, se intensificaram. E venceram mais uma vez a nuvem roxa.

 E se afastaram, cada uma para seu lugar. Cada uma seguiu seu caminho, se espalhando pelo céu. 

 Parecia que nunca mais iriam se ver, mas elas continuavam a brilhar. O brilho era intenso e belo, e nunca iria se cessar.

 Pois aquela Aurora era infinita.

Aurora: Capítulo 50 - E iluminará todos que olharem para cima


AURORA
CAPÍTULO 50: E ILUMINARÁ TODOS QUE OLHAREM PARA CIMA


 Sophie continuava chorando, a explosão de antes agora reduzida a um soluçar incontrolável. Esses eram os únicos sons que propagavam naquela área destruída, o restante da Aurora em silêncio. Não conseguiam ter forças para quebrar aquele momento, todos mergulhados em pesar pelos companheiros caídos. Finalmente, Dominic se adiantou e ficou de joelhos perto da garota. - Sophie... - Começou, colocando a grande mão em seu ombro. A garota se virou para ele e o abraçou, chorando agora em seu peito. O homem acariciou seus cabelos, sem saber o que dizer.

 Sasha afundou os dedos nos olhos, procurando se recompor. Ainda não estavam salvos. - O que faremos agora? - Soltou em voz alta. A redoma púrpura ainda os cobria, mesmo com Maedegoen morto. Acharam que deveriam apenas derrotar o demônio para voltarem ao Mar de Cellintrum, mas estava claro que não era o fim.

 Dalan esfregou a mão pela testa, tentando pensar em algo através da dor no coração. Quando levantou a cabeça, percebeu que tinham companhia. Era Stella quem se aproximava, carregando o incapacitado Desaad pelos braços.

 Os outros membros da guilda também se viraram para os recém-chegados. Koga tremeu em fúria, e disparou na direção do líder do Culto Púrpura. - DESGRAÇADO! - Gritou, correndo com os punhos preparados.

 Lyra se adiantou, puxando o companheiro pelo braço e o abraçando. O rapaz tentou se livrar, lívido, mas ela o apertou com mais força, chorando timidamente. - Calma, por favor. - Soltou fraquinho. Koga bufou e diminuiu o ímpeto. Dalan, por sua vez, caminhou lentamente até Desaad. Parou à sua frente, e o ódio pingava de seu olhar. Ninguém falava nada.

 Finalmente, o garoto se virou para Stella. - O que ele está fazendo aqui? - Perguntou com a voz demorada.

 A líder da Aurora não respondeu de primeira, preferindo fitar para a comoção perto do corpo de Julie. Sophie continuava chorando, aninhada nos braços de Dominic. Lágrimas se avolumaram em seus olhos e ela chutou as pernas de Desaad, o deixando de joelhos. Puxou sua adaga. - Acredite, eu adoraria mandar esse infeliz ao inferno do qual ele saiu. - Começou por entre os dentes, a voz tão trêmula quanto a lâmina que que segurava. - Só que ele vai ser útil uma vez na vida. - Guardou a arma, chutando o cativo nas costelas. - Conte a eles o que vai acontecer.

 O homem levantou o queixo, passando os olhos em cada uma das pessoas ali presentes. O brilho do triunfo passou momentaneamente por seu rosto, mas se evaporou tão rápido quanto surgiu. - Vocês conseguiram derrotar Maedegoen... - Começou, sofrido. - Só que isso não significa que estão salvos.

 - O que quer dizer com isso? - Perguntou Sasha, dando um passo à frente. Stella desviou o olhar, uma expressão sofrida na face.

 - Nós no momento estamos entre dimensões, viajando entre os planos deste mundo. - Explicou Desaad, pigarreando. - Maedegoen utilizava de uma magia que pode ser traduzida como Veleiro Anil. Ela torna a distância entre as dimensões em algo físico, e atravessamos ela como um barco no mar.

 - Em língua de gente. - Rosnou Koga, ainda agarrado por Lyra. O homem revirou os olhos antes de continuar.

 - O demônio que vocês enfrentaram enclausurou toda essa fortaleza para podermos nos locomover por entre os planos. - Olhou para cima, enxergando a extensão da cobertura púrpura. - Só que, com sua morte, não vamos a lugar nenhum. Estamos presos entre as dimensões. - Abaixou o queixo, proferindo sua próxima frase com um sorriso. - E nossa proteção irá acabar logo, logo.

 Um silêncio tomou conta do lugar. Até mesmo Sophie parou de chorar. Alguns olharam para cima, percebendo pela primeira vez que a cor forte da barreira começava a se tornar opaca. - Isso... quer dizer que... - Começou Amanda, trêmula.

 - Sim. - Interrompeu Stella. - Esse lugar será destruído. - Mais uma vez, ninguém falou. A líder da Aurora que quebrou o choque. - Só que isso não significa que estamos condenados.

 - Como assim? - Perguntou Lyra, assustada. A mulher cutucou Desaad para que ele continuasse.

 - Obviamente vocês não sabem, mas existem pesquisas sobre nossa atual situação. - Disparou o homem, tentando se levantar. Stella deixou, mas manteve a adaga por perto. - Eu próprio estudei sobre isso antes de seguir com esse plano. Há uma chance de fuga. - Ele se virou, caminhando até o outro lado dos destroços. Murmurou algumas palavras e o ar se dobrou, formando um buraco púrpura do tamanho de Dominic. O portal tremeluziu e se manteve constante, o interior mostrando nada além do negro. - Como estão vivos, a alma de vocês usará nosso plano como bússola no meio do caos que é lá fora. Supostamente ela nos levará para casa, embora seja uma viagem desconfortável. - Os membros da Aurora se adiantaram, esperançosos, mas a líder levantou a mão.

 - Há uma coisa que precisam saber antes de continuarem. - Alertou, a voz tomada pelo sofrimento. Fungou antes de continuar. - Não se sabe o que acontece com quem faz essa viagem. - Seu queixo tombou, e parecia ser difícil falar. - Provavelmente nós, nós...

 - Perderão suas identidades. - Interrompeu Desaad, indiferente. Os outros ficaram em silêncio enquanto tentavam entender aquilo, mas ele continuou. - Apenas nossas almas irão fazer a viagem. Nossos corpos serão destruídos, e quando chegarmos à Gaea precisaremos reencarnar. Ou seja, começar do zero.

 - Quer dizer que... - Amanda encarou os companheiros, como se tivesse entendido errado. - Não iremos... digo... - Engoliu em seco. - Iremos nascer de novo?

 - Sim. - Respondeu a líder, e uma lágrima caiu de seu rosto. - Não iremos de lembrar de nada. Não... não seremos mais a Aurora.

 - Então lutamos por nada. - Soltou Sasha, os punhos cerrados e trêmulos. - Não serviu para nada. É ISSO? - Gritou, sua voz ecoando pela fortaleza. Dalan se lembrou de Wieder. Ninguém agora iria conhecer seus feitos. Encarou lívido Desaad, e não era o único.

 - É TUDO CULPA SUA! - Gritou Koga, e Lyra o segurou com dificuldades. - JULIE MORREU POR SUA CULPA, ASSIM COMO WIEDER E MARCUS! E AGORA ISSO? - Tentou dar um passo à frente, descontrolado. - EU VOU TE MATAR!

 - Isso não vai resolver nada, Koga! - Avisou Stella, também se estressando. - Temos que sair daqui, rápido! A cúpula não vai durar muito tempo!

 - Poxa vida, mas eu não dei pra vocês essa rota de fuga. - Disse Desaad, convenientemente escondido atrás da mulher. Dalan podia ter lhe dado um soco, mas ao invés disso se virou para sua líder.

 - Tem que haver um jeito. - Afirmou. - Algum livro, alguma... coisa que esse verme provavelmente está escondendo.

 - Não há, Dalan. - Confessou a mulher. - Eu tenho certeza.

 - Mesmo assim, talvez vocês estejam errados sobre o que vai acontecer conosco. - Considerou Kulela, coçando o queixo. - Digo, se ninguém nunca passou por isso, não há como ter certeza das consequências. É uma área nova.

  - Sim, mas temos que estar preparados para o pior, que é o mais provável. - Disse Stella. - Acredite, eu quero que nos reunamos tanto quanto vocês, mas...

 - Senhora Stella... - Interrompeu Sophie com a voz fraca, e ela a encarou com os olhos brilhantes. - Se... se nós vamos viver... talvez... - Abaixou o queixo, procurando forças. - Julie poderia também?

 A líder da Aurora sentiu as lágrimas voltarem ao seu rosto. - Não, querida. Infelizmente, ela morreu aqui. Sua alma já encontrou a pousada final. - Sophie torceu o rosto, e voltou a afundá-lo no peito de Dominic.

 Uma fungada mais alta cortou o ar, uma que não vinha de onde esperavam. Amanda estava parada, tremendo, as lágrimas escorrendo copiosamente pelo rosto. - Amanda? - Perguntou Dom, mas a garota não pareceu ouvi-lo.

 - E-e-eu... - Soluçou, parecendo se esforçar para ficar em pé, a voz mais aguda do que o normal. - Não quero... eu não quero... - Fungou, e mais lágrimas desceram pelos olhos. - Eu não quero ficar sozinha de novo.

 Ela se embolou com a própria língua, e caiu de joelhos com as mão no rosto. - Eu não quero perder vocês! - Continuou, gritando. - Não quero! Passei tanto... tanto tempo sozinha que... vocês... vocês são a minha família! - Desatou a chorar, abafada pelas próprias mãos. O restante da Aurora não sabia o que fazer. Lágrimas encheram os olhos de todos, que sentiram o coração se apertar. Cada um tinha suas lembranças, provas de amizade e amor entre eles. E agora, tudo estava prestes a acabar. Era muito para aturar.

 Koga estava com os dentes rangendo, a face contorcida enquanto que Lyra chorava em suas costas. Tremeu, o punho cerrado com tanta força que a unha rasgou a pele. Os outros continuavam abalados demais para fazer alguma coisa, e ele gritou. - MERDA! - Isso chamou a atenção de todos, que viraram em sua direção. Até Desaad, indiferente a tudo, ergueu as sobrancelhas.

 O rapaz respirou intensamente, o queixo abaixado enquanto pensava. Quando levantou a cabeça, havia um brilho obstinado no olhar. - Nós não podemos ficar assim! - Berrou. - Eu sei que... eu sei que não sou o mais inteligente aqui! Só que nossos amigos se mataram para nos salvar! Temos... temos que seguir em frente! - Ele conteve o choro, mas não limpou o rosto. Apenas ficou parado, tremendo e juntando suas forças.

 - Koga... - Começou Lyra, levantando a cabeça para encará-lo. O amigo se virou e segurou seu rosto, encostando sua testa na dela. Respirou forte, como se precisasse daquilo mais do que a companheira. - Precisamos nos manter felizes perto deles, lembra? - A garota arregalou os olhos. - Para melhorar um pouco o clima. Eles precisam disso.

 Lyra se afastou, encarando-o com assombro. E, com muito esforço, Koga fechou os olhos e sorriu. Ela torceu a boca e o abraçou, aninhando a cabeça em seu ombro. - Vou sentir sua falta. - Disse embolada. O rapaz segurou seus cabelos roxos com força.

 - Eu também. - Soltou, quase chorando de novo. Se afastou e ficou de costas, andando até o portal sem olhar para mais ninguém. Parou a um passo do vazio, e respirou fundo. - Foi ótimo passar os melhores anos da minha vida com vocês. - Confessou para a Aurora. E, com isso, deu um passo à frente e sumiu.

 Lyra estava com o rosto torcido, procurando se mover. Precisamos nos manter felizes perto deles, ressoava uma voz em sua cabeça. Eram a pedra fundamental da guilda. Rangeu os dentes com raiva e se dirigiu com os passos firmes e espaçados até Stella. Estava com o queixo abaixado, mas isso não a impediu de falar. - Muito obrigado por tudo! - Gritou para sua líder. - Foi... foi uma honra trabalhar com você! Foi uma honra ser membro da Aurora. - Começou a chorar, mas tentou colocar tudo para dentro. Deu uma olhada para os outros. Dominic e Kulela a encaravam, enquanto que Amanda continuava no chão, sem acreditar no que estava acontecendo. Lyra sentiu o coração se apertar com uma dor imensa. Queria parar e abraçá-la, ficar lá até o fim dos tempos, mas Koga tinha razão. Tinham que sair dali. Foi até o portal, respirou fundo, e desapareceu.

 O silêncio voltou àquele lugar. Foi a vez de Kulela soltar o ar e dar um passo à frente. O reptiliano caminhou em silêncio, sem olhar para ninguém, até que parou à frente do buraco no ar. Sorriu. - Sabe, se dissessem há alguns meses que eu iria derramar lágrimas por um bando de humanos, mandaria o sujeito para um hospício! - Ele riu, mas não foi acompanhado. Encarou os companheiros por detrás do ombro. - Eu não sei o que vai acontecer com a gente, mas... continuem essas excelentes pessoas. Aconteça o que acontecer. - E com isso, não estava mais lá.

 Dominic apertou os ombros de Sophie com força, a afastando carinhosamente de si. Ficou em pé, procurando as palavras. - Sabem, eu queria vê-los crescer. Tinha um sonho de acompanhá-los pelo resto de suas vidas. Conhecer seus maridos, esposas, ver seus filhos. - Seus olhos ficaram úmidos, e passou a gigantesca mão pelo rosto. - Só que... sei que não vão precisar de mim. Vocês são pessoas espetaculares. Me deram um sentido para seguir em frente. - Caminhou até Stella, e estendeu a mão. - Irei repetir o que Lyra disse. Foi uma honra trabalhar com você. - A mulher chorava. Apertaram as mãos e o homem foi até o portal, onde esvaneceu em pleno ar.

 Dessa vez, demorou um pouco mais para que alguém se movesse. Sophie e Amanda estavam chorando no chão, e Sasha estava com a franja em cima dos olhos, sem que ninguém soubesse o que estava acontecendo em sua cabeça. Foi Dalan quem levantou a cabeça. Andou até a garota de cabelos azuis, e estendeu a mão. - Você me ensinou o que realmente era uma guilda, Sasha. A cuidar e confiar em seus companheiros. - Seu rosto estava impassível, marcado pelas lágrimas. - Obrigado por tudo.

 A garota riu antes de levantar o queixo. - E você foi meu melhor aluno. - Ela o encarou, e os dois se olharam por algum tempo. Apertaram as mãos, se lembrando da primeira vez que se encontraram. Parecia fazer parte de outra vida. E, em alguns minutos, seria.

 O garoto então virou as costas, indo até onde Amanda estava ajoelhada. Ela percebeu sua aproximação e o abraçou, afundando o rosto em sua camisa. - Você é um idiota, sabia? - Soltou.

 - Acho que sim. - Sorriu o rapaz, nervoso. A companheira o olhou antes de encarar o chão. - Dalan, eu... eu não quero fazer essa viagem sozinha. - Apertou com força suas roupas. - Eu... posso ir com você. - Ele riu pelo nariz.

 - E desde quando consegui te impedir? - Ela sorriu, agradecida. Os dois se levantaram e o garoto foi até Sophie, que continuava desolada. Se ajoelhou, passando a mão por seus cabelos.

 - Sophie, eu sinto muito. - Não houve resposta, exceto por uma fungada. Dalan mordeu o lábio. - Sua irmã teve orgulho de você até o fim. Só queria que você soubesse disso.

 Quando ele se levantou, sentiu algo segurar sua mão. Observou Sophie se levantar e se agarrar ao seu braço, colocando o rosto em seu ombro. Não conseguia enxergar sua impressão, mas sabia o que queria dizer. Sorriu de forma triste, e os três caminharam até o portal. Sumiram em um piscar de olhos.

 Restavam Sasha e Stella. - Vamos logo, então. - Disse a garota, se aproximando do vazio. Sua mãe, no entanto, continuou parada.

 - Querida, eu... - Lágrimas escorreram de seus olhos, mas ela as prendeu com esforço. - Você me orgulhou bastante, sabia? A mim e ao seu pai. - A filha tremeu um pouco.

 - Fiz apenas o que me ensinaram. - A líder da Aurora se aproximou, e colocou a mão em suas costas. Estavam a centímetros do portal.

 - Sim, e não poderíamos desejar melhor de nossa filha. - Levantou a cabeça, como se pudesse enxergar o rosto de Adam. - Quando te concebemos, queríamos que assumisse a guilda. Que fosse tudo que não conseguimos ser. Ao invés disso, só te jogamos preocupações e dor. - Respirou fundo.

 - Eu fiz tudo isso porque quis, mãe. - Disse Sasha, ainda sem olhar para trás. - Porque você e papai me ensinaram o que era certo. E isso foi o mais importante. - Sua voz falhou nas últimas palavras. Stella fechou os olhos e sorriu.

 - Sim. E, por isso, me desculpe. - Empurrou a filha, que sumiu no ar. Stella permaneceu. Ela chorou, a mão tentando segurar as lágrimas. Atrás dela, haviam sons de palmas.

 - Achei que ia fazer isso, mas não tinha certeza. - Disse Desaad, zombeiro. - Meus parabéns pela coragem. - Stella cerrou o punho.

 - Não irei te deixar passar por esse portal. - Avisou a líder da Aurora, se virando. - Já causou dor demais à minha família. Vou te prender aqui nem que seja a minha morte!

 - Farei questão da última parte ser verdadeira. - Ele riu, a energia púrpura passando pelo corpo. - Tive tempo para juntar minhas forças! Não vai conseguir me deter!

 A outra riu. Limpou as últimas lágrimas e levantou a cabeça. - Tente passar por mim. - E Desaad disparou pelos destroços negros de uma fortaleza acabada, gritando por sua vida. Só precisava passar por uma simples mulher e teria uma nova chance.

 Só que quem estava do outro lado não era uma mulher comum. Era Stella Alba, segunda e última líder da Aurora, uma pequena guilda de Helleon que havia salvado o mundo, e que agora seria relegada ao esquecimento. Só que isso não importava. A fama nunca havia importado para aquelas pessoas. O certo era a única coisa que importava. Aprendera isso com o marido, um visionário que perdeu sua vida cedo demais. Antes de morrer, ele conseguiu passar o que queria para uma nova geração, que manteve seus ideais até o fim. Eram valores que representavam muito, mas poderiam ser traduzidos em simples palavras. Palavras que ecoaram na mente de Stella antes de sua última luta, a luta por seus companheiros. Palavras estas que representavam tudo.

 Somos o brilho mais forte
 da noite mais escura.
 Quando as trevas estiverem em seu ápice,
 a Aurora não tardará
 e iluminará todos que olharem para cima.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Aurora: Capítulo 49: A Aurora não tardará


AURORA
CAPÍTULO 49: A AURORA NÃO TARDARÁ

 Maedegoen esticou a cabeça para trás e rugiu, um rugido colossal que tremeu os pilares curvados que o cercavam. Seus dez olhos fitavam o céu, coberto por uma esfera roxa que iluminava seu pelo negro. Em seu peito, havia um cristal rachado, inútil. Isso não o agradava nem um pouco.

 Ele bateu as mãos no chão, gerando crateras na rocha. Ajeitou seu corpo de gorila e olhou para frente, vendo uma série de pessoinhas correndo em sua direção. Esticou a palma e gerou um brilho púrpura em suas mãos. Do outro lado, Sasha percebeu aquilo e gelou.

 - PARA OS LADOS, AGORA! - Gritou, agarrando os dois companheiros mais próximos e se jogando para a esquerda. Pularam por uma janela, e os cacos de vidro ainda estavam no ar quando o golpe de Maedegoen acertou a estrada, obliterando o que encontrava com um estrondo ensurdecedor. Uma nuvem de poeira se levantou, cobrindo a área.

 - Céus. - Disse Dominic baixinho. Estava com Sasha e Dalan em uma sala suja e desarrumada, ajoelhados no chão. A garota se levantou e foi para o que sobrou da janela, vendo o demônio ao fundo. Uma gota de suor desceu por sua têmpora empoeirada.

 - Precisamos de um plano. - Se virou para os outros, vendo que Dalan continuava com o olhar distante. - Dalan! - Gritou para chamar a atenção. Ele a olhou sem reação, e Sasha desceu os olhos brevemente antes de continuar. - Precisamos nos focar. Ouviu?

 O rapaz concordou com a cabeça em silêncio. Se lembrou de Wieder mais uma vez, correndo para sua morte. E se lembrou de Maedegoen. Cerrou os punhos. Não deixaria aquilo barato. - Tenho um plano. - Disse finalmente, um brilho voltando às pupilas.

 Enquanto isso, Desaad estava agachado atrás de um edifício, recém-sobrevivente do novo ataque do demônio que ele próprio havia invocado. Talvez as coisas tenham saído um pouco do controle, considerou. Era melhor se afastar e deixar que a criatura cuidasse disso por ele. Tinha acabado de se levantar quando foi agarrado por trás e jogado contra a parede mais próxima com força. - Vai a algum lugar? - Era uma voz conhecida.

 - Stella? - Disse de forma abafada, o rosto prensado contra as pedras negras. A líder da Aurora estava o prendendo, uma mão em sua cabeça. O homem pensou em invocar o próprio chão para acabar com ela, mas sentiu uma lâmina encostar em seu pescoço.

 - Nem sequer tente. - Rosnou ela, perto o suficiente para que sua respiração fosse sentida no pescoço do adversário. - Tive que vender todas as recordações de meu falecido marido para comprar o que fosse necessário para salvar meus companheiros, e mesmo assim dois deles morreram. - Uma gota de sangue caiu na lâmina. - Portanto, é melhor me obedecer.

 Desaad ficou em silêncio por alguns segundos, considerando suas opções. - O que quer? - Retrucou finalmente, de cara amarrada.

 - Tudo. - Respondeu Stella, o cenho franzido. - Quero que me conte tudo.

 - EI! - Gritou Julie, procurando chamar a atenção. - AQUI, SEU GORILA GIGANTE! - Estava em cima de um telhado com Dominic, e a luz em sua mão brilhava forte. - VENHA NOS PEGAR!

 Maedegoen os observou e levantou a palma, conjurando um novo raio. Dominic agarrou a garota e saltou para o outro telhado, escapando por pouco da onda de destruição. - Não é possível que ele tenha tantos desses à disposição. - Resmungou, deixando a outra no chão. Olhou para trás, vendo a trilha de edifícios caídos atrás deles. - Uma hora tem que se cansar!

 - Dom! - Era Lyra, saltando de um prédio adjacente. - Dalan me disse o que estavam tentando fazer! Algum sucesso?

 - Ele nem sequer saiu da plataforma. - Retrucou Julie, irritada. Um destroço havia a acertado um pouco acima do olho direito, e o ferimento sangrava o suficiente para tapar sua pálpebra. No entanto, não era nada comparado ao corte recém-tratado no estômago. - Ele é muito grande para o atacarmos em terreno plano. Precisamos levá-lo para cá.

 - Posso tentar alguma coisa. - Ela armou o arco que carregava nas costas, encaixando uma flecha. - Aqui não tem vento. - Comentou ao observar a redoma púrpura que cobria a fortaleza. - Isso torna meu trabalho mais fácil. - Ela estreitou os olhos, afastando o cabelo roxo com um sopro de ar. Respirou, mirou e soltou. O projétil zuniu e voou, acertando o rosto de Maedegoen, que rugiu. Lyra riu nervosa. - Agora vamos sair daqui. - Pediu, pulando para longe.

 O demônio bateu as mãos no chão, seu pelo negro subindo e descendo. Tentou encontrar quem havia o acertado, mas era impossível discerni-los àquela distância. Soltou mais um rugido e desatou a correr na direção dos prédios, o chão tremendo a cada passada.

 Ele adentrou a área residencial, derrubando o que encontrava enquanto que procurava suas presas. Koga, que estivera observando tudo do nível do chão em um beco apertado, engoliu em seco.

 - Quase na hora. - Alertou Amanda, do outro lado da ampla rua. Ela também estava tensa, com uma coletânea de cacos de vidro nas mãos. Maedegoen passou por entre os dois, e soltaram o ar preso antes de sairem correndo atrás dele. - AGORA! - Gritou a garota, mirando as pernas do demônio. Jogou seus projéteis improvisados contra o membro, e o companheiro acertou seu bastão na outra panturrilha. O monstro rosnou e se virou, mas eles já haviam corrido para a segurança das ruelas adjacentes.

 Maedegoen se virou mais uma vez, sentindo algo em suas costas. Tentou olhar para trás, mas não conseguiu enxergar nada. Desistiu após procurar brevemente, e as roupas cinzas em suas costelas começaram a escalar. Alguns prédios distantes, Dalan e Julie observavam a cena, e a garota se adiantou com o coração acelerado.

 - Sophie. - Disse baixinho, e deu um passo à frente. Foi contida pelo companheiro, que segurou seu braço. Se virou para ele com raiva, o sangue ainda úmido manchando a testa. - O que pensa que está fazendo?

 Dalan não respondeu de primeira, preferindo encará-la com seriedade, um azul opaco cobrindo as laterais de seus olhos. - Confie nela, Julie. Sophie consegue cuidar disso.

 - Do quê está falando? - Se enfureceu a garota, recolhendo o braço com truculência. Não conseguiu se soltar. - Ela está escalando as costas de um demônio! Não vou deixar que--

 - Ela é a nossa melhor chance. - Interrompeu o rapaz. - E eu só a pedi pra fazer isso porque tenho total certeza de suas capacidades. - Se aproximou, conservando a seriedade do rosto. Não tinha tempo nem paciência para entrar em um argumento no momento. - Confie nela, Julie. Sophie precisa de seu apoio mais do que qualquer coisa.

 A membro da Aurora mordeu a língua, controlando uma resposta. Se lembrou do ocorrido contra a Dama dos Pesadelos, e de tudo que tinha dito à irmã gêmea. Desviou o rosto, voltando a observar o demônio e as pequenas roupas que o escalavam. Tudo o que mais queria era ir lá e interromper tudo aquilo, mas algo dentro dela a fez parar. Por pouco. - Que você esteja certo. - Disse por entre os dentes.

 Maedegoen se aproximava de um edifício com teto oval, uma das poucas construções cuja arquitetura se diferenciava dos prédios retangulares e nus. Escondidos pela estrutura única, Kulela e Sasha estavam agachados, se preparando para a próxima parte do plano. O reptiliano amarrava um curativo no ferimento da perna direita da garota, que estava de pé e colada ao telhado, tentando ouvir a aproximação da criatura.

 - Se não estivéssemos perto do fim do mundo... - Começou o curandeiro, rompendo o excesso da atadura com os dentes. - Eu diria que essa é a ideia mais idiota que eu já ouvi na minha vida.

 - Calado. - Ordenou Sasha. Kulela terminou com o tratamento apressado, e ela testou a pisada no chão. - Parece ser o suficiente.

 - Se você sobreviver a isso, irei chamar os jornalistas pessoalmente. - Avisou o reptiliano enquanto a companheira pegava uma estaca de madeira particularmente afiada ao seu lado, reminiscente de algum móvel que Dominic havia encontrado. - Deve chamar mais atenção dos jornais do que termos derrotado um demônio de sete metros que queria trazer Zemopheus para este lado da fronteira. Pelo menos dos que eu conheço.

 - Apenas tome cuidado com o que ele for fazer em seguida. E vá para sua posição. - Ordenou Sasha, tomando o máximo de distância do teto angulado que conseguia. Encostou as costas em um corrimão e se agachou para colar as mãos no chão e apoiar os pés. Ouvia os sons dos passos do demônio, tremendo o piso. Uma gota de suor desceu pelo seu rosto.

 Kulela inclinou o corpo para enxergar melhor a criatura, estreitando os olhos. - Acho que...

 - AGORA! - Gritou a garota, disparando. Correu o telhado à sua frente, uma inclinação de quase quarenta e cinco graus. O ferimento na perna ardeu, mas não havia como se importar naquele momento. Chegou ao pico e saltou, confiando piamente em seus instintos. Estava no ar quando viu Maedegoen em sua direção, olhando para frente em busca de suas presas. Sasha poderia ter sorrido se fosse esse tipo de pessoa. Agarrou a estaca com as duas mãos e jogou o peso para trás, o vento do deslocamento agitando seus curtos cabelos azuis e sua trajetória a levando para o ombro direito do demônio. Berrou o mais alto que podia e jogou os braços para frente, enfiando a arma bem fundo no corpo de Maedegoen. Ele gritou e ela também, o tranco forte quebrando seus pulsos e a jogando para trás em direção da morte.

 Ironicamente, foi a própria criatura que a salvou de certa forma, pois seu gigantesco braço se deslocou para trás e a acertou, arremessando-a contra as janelas do edifício mais próximo. As roupas cinzas que já estavam penduradas no pescoço do demônio quase caíram, e Sophie se materializou por reflexo. Um caco de vidro brilhava em sua mão direita.

 Julie enquanto isso saltava de teto em teto, com Dalan ao seu lado. O coração praticamente vibrava em seu peito. A irmã enquanto isso conseguiu se reequilibrar, subindo a cabeça de Maedegoen. Ele, em qualquer outro momento, a sentiria escalando em sua nuca, mas o ferimento em seu ombro ocupava todas as suas atenções. Puxou a estaca com a mão esquerda, e o movimento brusco fez com que Sophie caísse bem quando havia chegado ao topo do crânio. Julie gritou, mas ela conseguiu agarrar um tufo de cabelos da testa para se segurar. Bem à frente dos olhos do monstro.

 As dez pupilas, espalhadas de forma aparentemente aleatória em seu rosto, a encararam como se fossem apenas uma. Sophie sentiu o frio gélido envolver seu corpo, a arma quase caindo de suas mãos suadas. Olhou para baixo, encarando os olhos amarelos que a observavam silenciosamente. Sua mão esquerda se apertou nos fios de cabelo negro que seguravam sua vida. E então, ela endureceu o queixo e enfiou o caco de vidro na órbita mais próxima. E o mundo explodiu.

 Se Maedegoen já havia gritado daquele jeito, não sabiam. Nem mesmo quando Wieder destruiu o cristal que usava para encontrar Zemopheus ele havia berrado tanto. O som foi o suficiente para rachar as janelas e tremer os destroços mais próximos, e Sophie só conseguiu contorcer o rosto, a mão direita envolta em sangue negro e quente.

 O demônio cessou seu berro abruptamente, e os olhos remanescentes encararam a membro da Aurora em uma fúria incontrolável. Ela não teve reação.

 - SOPHIE! - Gritou Amanda, correndo em sua direção. A companheira não conseguia escutá-la, mas a avistou abrindo os braços no teto mais próximo. A gigantesca mão da criatura veio na direção dela, que agiu sem pensar. Saltou para o pescoço de Maedegoen, correndo por seu ombro e saltando na direção do prédio. Enquanto estava no ar, seu coração parou. Não iria conseguir chegar.

 Já havia fechado os olhos quando sentiu um tranco forte no braço direito, e sua queda cessou. Olhou para cima, vendo que Amanda a havia agarrado com as duas mãos. Estava com o pé apoiado na mureta do telhado, o rosto se enchendo de vermelho pelo esforço. Jogou seu peso para trás, usando todas as suas forças para levantar a outra garota. Sophie olhou para cima do ombro, trêmula. Ainda estavam na mira do monstro.

 - EI! - Gritou Lyra no teto do prédio do outro lado da rua, fazendo chover uma miríade de flechas na cabeça de Maedegoen. Ele simplesmente jogou o braço para trás, destruindo o penúltimo andar e derrubando a membro da Aurora em uma nuvem de destroços.

 - LYRA! - Gritou a garota de cabelos loiros, as lágrimas já ao redor dos olhos. Uma sombra cobriu a luz púrpura que a banhava, e levantou a cabeça. O demônio estava com o braço esticado para as duas. Amanda conseguiu puxar a companheira, mas as duas caíram no chão, temporariamente indefesas. Sophie conseguiu apenas virar de costas, encarando de perto a morte que se aproximava.

 Eis que, de repente, sentiu algo frio e molhado no chão à sua esquerda. Olhou naquela direção. Dalan vinha deslizando no gelo com os joelhos dobrados e os dois braços para trás, tão rápido quanto Sasha. - SE SEGUREM! - Gritou. Saltou os últimos metros e agarrou as duas, bem no momento em que a criatura destruía o piso. Os garotos rolaram no chão que se inclinava, caindo sem controle na escuridão.

 - EI, BABACA! - Era a vez de Dominic e Kulela, correndo pela rua para atacar Maedegoen pelas costas. O berro pareceu chamar a atenção do demônio, que se virou ensandecido. Um de seus olhos estava vazado, e isso parecia o tornar mais ameaçador do que nunca. Os membros da Aurora pararam, tomados pelo mais puro medo, e não reagiram quando o monstro os chutou e os arremessou centenas de metros pela estrada. Estavam sendo derrubados que nem moscas. O adversário se virou em seguida para o prédio onde estava Sophie, Dalan e Amanda, procurando a presa que o havia ferido. Um bastão dourado rodopiou no ar, acertando sua testa.

 - Eu não acredito. - Disse Julie no teto de um edifício próximo, incrédula. Koga, no auge de sua estupidez, havia arremessado sua única arma contra Maedegoen, que agora se virava contra ele. O rapaz sentiu a testa suar, olhando para os lados assustado. Parecia uma boa ideia em sua cabeça.

 O demônio esticou a palma, começando a conjurar seu raio. Koga não se moveu. Não havia como fugir a um golpe daqueles, tão próximo. Julie, do outro lado, corria para se aproximar. Também tinha sua última cartada desesperada. - EI! - Gritou, e levantou a mão direita. A luz brilhou em sua mão, tão forte que pareceu envolvê-la em uma esfera luminosa.

 E, surpreendentemente, isso pareceu afetar a criatura.

 Ele rugiu, tropeçando para trás enquanto procurava se afastar da luz. Acabou caindo em cima de um prédio, destruindo-o e derrubando os mais próximos. Koga saltou para longe, mas não havia mais onde pousar. Bateu na parede destroçada de um edifício, onde se chocou com uma janela antes de cair pesadamente no chão, a poucos metros de Sasha. Ela estivera acompanhando a confusão, segurando a inconsciente Lyra no ombro esquerdo. Seus olhos brilhavam. Tinham um plano B.

 Enquanto isso, Julie fitava assustada a destruição que havia causado. Olhou para a própria mão, sem entender o que tinha acontecido. Apenas um grito a fez sair de seus pensamentos. Sophie estava pedindo por socorro. Saltou os telhados até onde os companheiros haviam sido atacados, inclinando a cabeça no buraco causado pelo ataque de Maedegoen e iluminando a escuridão. Sua irmã estava lá, alguns andares abaixo e em pé ao lado dos desacordados Dalan e Amanda.

 - Ah, graças aos deuses! - Disse ela, limpando as lágrimas do rosto. Se virou para os amigos caídos. - Dalan nos salvou, mas eles foram feridos! Temos que tirá-los daqui! - Levantou a cabeça para a irmã, que por sua vez se virou para o demônio. Estava se levantando, seu rugido voltando a romper os ares.

 Do outro lado da fortaleza, Stella estava com Desaad preso pelos braços, incapaz de reagir diante da fúria de Maedegoen, que se levantava. Ficou em silêncio, o queixo tremendo. - Ele vai destruir a todos. - Disse subitamente o líder do Culto Púrpura, também assombrado. - Não se importa mais com recolher mais uma vez o contra-encanto deles. Ele vai matar todos em sua fúria.

 - Eles vão conseguir. - Soltou a líder da Aurora, mais para si mesma do que para o adversário. - Tenho certeza. Eles vão dar um jeito.

 Um raio cruzou os ares, acertando o teto em que Julie estava. Julie tentou o manter longe com seus poderes de luz, mas estava muito longe para fazer alguma coisa relevante. A criatura preparava seu raio, e ela se virou aterrorizada para a irmã, alguns andares abaixo. Havia uma improvisada trilha em sua direção, e Julie saltou para descer até Sophie. - SE PROTEJA! - Soava inútil. O golpe que o monstro preparava fazia o chão tremer, indicando que seria muito mais forte do que os anteriores. Não tinham como fugir.

 Julie se jogou no buraco onde Sophie estava caída, procurando se esconder do demônio. Mirava um plano inclinado, mas acabou escorregando no destroço. Sentiu o coração parar e esticou o braço para agarrar em alguma coisa e, para sua surpresa, encontrou um braço suado e magro. Olhou para cima, onde viu uma exausta Sasha no teto a segurando pelo cotovelo. - Vamos. Rápido. - Grunhiu ela. A outra olhou para baixo e viu que a altura já era segura, e se largou. A companheira pousou ao seu lado. - Eu deixei Lyra e Koga em um edifício por perto, mas temos que levar aquela coisa para longe deles. - Ordenou tentando puxar Amanda, mas os pulsos quebrados tornavam seu trabalho mais difícil. Julie limpou o sangue seco do rosto e levantou Dalan, pedindo que Sophie cuidasse de Amanda.

 - Por onde? - Perguntou nervosa, sentindo o nervosismo martelar seu coração. Sasha correu até uma janela, esticando a cabeça para ver a altura para o chão. Conseguiriam descer. Se virou para as companheiras em pé, um plano em sua cabeça.

 - Prestem atenção. - Disse, ficando em silêncio por um instante para ouvir se Maedegoen se aproximava. - Julie, de alguma forma você conseguiu assustar aquele monstro. É a nossa melhor chance. - Confessou ao encarar a garota. - Vamos tirar os feridos daqui e depois eu e Sophie iremos chamar a atenção dele para que tenha o caminho livre.

 - Vamos simplesmente deixar Amanda e Dalan sozinhos? - Perguntou Sophie enquanto a irmã ficava quieta. - Eles estão feridos, e tem aquela... coisa à solta.

 - Só sobramos nós três, Sophie. - Alertou Sasha, dando um passo à frente. Julie deixou o queixo cair. - Temos que arriscar.

 - Não acho certo. - Confessou a garota, ajeitando Amanda no ombro. - Eles podem morrer! - Agora Julie tremia. Havia um brilho em seu olhar.

 - Poderemos todas morrer se não fizermos nada. - Grunhiu Sasha, e Sophie se encolheu. - Temos que arriscar!

 - Tem razão. - Disse a voz fraca de Julie. - Poderemos todas morrer se não fizer nada.

 - Isso. - Concordou Sasha, ainda olhando para Sophie. Se virou para a outra. - Então corra pois--

 A ordem nunca foi dada, pois Julie estendeu a mão e fez com que ela brilhasse imensamente. As outras garotas gritaram, caindo no chão e segurando os olhos. Estavam cegas, pelo menos temporariamente.

 - JULIE! - Gritaram em uníssono, rolando no chão. Sasha tentou se levantar, mas Julie deixou o desacordado Dalan em cima dela. Virou o rosto para a irmã, que segurava o rosto com as duas mãos. Havia uma expressão de dor e pena em seu olhar, e lágrimas caíram efusivamente pelas bochechas. Virou-se para o outro lado sofrendo, saltando para fora do prédio.

 - EI! - Gritou com todo seu empenho, saindo do beco para a rua principal. Maedegoen já estava em pé, procurando suas presas. - VEM ME PEGAR! - Abriu os braços, a face vermelha.

 Era difícil saber o que se passava na cabeça de um demônio. Não era uma mente explorada pelos pesquisadores da Aliança, e muitas vezes isso levava a enganos trágicos. Naquele dia, talvez a criatura tivesse confundido a garota à sua frente com a outra que havia lhe cegado um olho. Talvez soubesse que ela tinha conjurado a luz que tinha lhe ferido. Quem sabe. Essa discussão levaria a conceitos filosóficos e espirituais sobre a natureza dos demônios, uma área em que seria difícil discernir a verdades das mentiras. O que claramente era verdade, no entanto, foi o fato de Maedegoen ter esticado a mão na direção de Julie, a agarrando com força. E apertou.

Imediatamente quase todas costelas da garota se partiram, furando músculos, órgãos e pele, qualquer coisa que encontravam no caminho. A garota jogou o pescoço para trás e gritou, o sangue subindo pela garganta. A dor era inexcrutável, o suficiente para desmaiar seres muito mais fortes. Só que Julie não era uma pessoa comum. Tinha uma vontade tão forte que a fazia respirar mesmo com os pulmões dilacerados e . Forçou sua cabeça trêmula para frente, o rosto contorcido em fúria e vontade. Sangue pingava do nariz e da boca, mas ela não cedia. Se obrigou a encarar os nove olhos do demônio, rangendo os dentes. Ali estava tudo que odiava. Tudo que ameaçava seus amigos e sua irmã. Ele atacara Koga. Atacara Dominic. E queria a morte de Sophie. Nunca poderia deixá-lo. Tinha que protegê-la. Tinha que protegê-los. Tinha que dar tudo que conseguia.

 - Nunca mais... - Chorava. Tremia. E não desistia. - Nunca mais... encoste... - Não conseguia sentir sua mão, mas tinha que ativar seus poderes. Era tudo que importava. - ... na Aurora.

 Gritou, invocando cada grama de seu ser para usar seus poderes. A luz veio de seu sangue, iluminando cada pedaço de pele em seu corpo. Maedegoen gritou, aterrorizado. Havia caído em uma armadilha. Tentou se livrar da garota, que se segurou. Não podia soltá-lo. Tinha que estar próxima. Era a última chance. Gritou, sendo rodeada pela esfera de luz. Cada pingo de sua alma queimava, cada grama de vontade era usada. E Julie Helder, membro da Aurora, brilhava em luz branca. Cada vez mais forte, enquanto que o demônio gritava e ela também, envoltos na mesma esfera, cada vez mais forte, e mais forte, tão brilhante quanto o sol, mais brilhante que o sol, a luz tão branca que














































 lie? JULIE! - Sasha corria pela fortaleza de pedras, procurando sua companheira. Os outros membros da Aurora também estavam na busca, todos com o coração a mil. Sophie chorava, assim como Amanda e Koga. Não havia sinal da garota. Maedegoen estava caído, morto, mas não era mais o foco. O foco era a amiga perdida. - JULIE! - Gritou a garota de cabelos azuis, passando pelo corpo do demônio. Entrou no edifício que ele havia caído, e seu coração parou. - Julie. - Correu para ela, mas antes que chegasse sabia que já era tarde. Havia muito sangue. Se ajoelhou ao seu lado, procurando um pulso em seu pescoço. Para sua surpresa, ela abriu os olhos.

 - S...s...sa.... - Tentou falar, o rosto pálido. Sasha levantou a cabeça, desesperada.

 - SOPHIE! KULELA! AQUI, AGORA! - Se virou para a companheira, segurando sua mão. - Não tente falar nada, Kulela já está vindo, ouviu? - Sua voz estava embolada, e lágrimas caíam de seus olhos para os ferimentos da outra. Julie sorriu fracamente.

 - Eu fui... - Tossiu, e sangue desceu por seus lábios. Encarava Sasha com um misto de alegria zombeira e tristeza profunda. - Fui corajosa... dessa vez?

 Sasha soluçou, torcendo o rosto para conter as lágrimas. Tentou falar, mas não aguentou. Ao invés disso apenas acenou enfaticamente a cabeça.

 - Não... - Era Sophie quem havia chegado. Correu para a irmã, e a outra se levantou.

 - KULELAAA! - Saiu para procurá-lo, deixando as gêmeas sozinhas. Sophie tremia como nunca, segurando o rosto tão parecido com o seu. Discretas lágrimas saíam dos olhos de Julie, e ela tentou sorrir.

 - Sophie... - O sorriso mudou para um traço torcido enquanto que ela encarava o rosto da irmã. Sophie chorava copiosamente, e encostou a cabeça na testa da outra.

 - Por favor, não vá... - Pediu a garota, contorcendo o rosto. - Eu preciso de você. Preciso de você ao meu lado. - Encarou os olhos da gêmea. - Eu prometo que nunca vou me importar mais com nada que você faça e sempre vou obedecer tudo que você quiser. Passo o dia ao seu lado, não saio da sua vista, mas por favor... - Lágrimas caíam como a chuva. - Por favor, não morra...

 Julie também chorava. Queria muito ver a irmã crescer, viver, encontrar o pai perdido. Sentia que falhara inúmeras vezes com ela, e pediu por uma segunda chance. Só que sabia que não iria receber. - Sophie... - Tentou começar, se enrolando com a própria língua. - Preste atenção.

 - Não, não... - Choramingou a outra. - Por favor, não fala nada. Você vai poder me dizer amanhã. Você vai. - Segurava a camisa da gêmea com tanta força que não havia como largar. - Tem que conseguir. Você... sempre conseguiu.

 - Sophie... - Tentou levantar a mão, mas não tinha forças. Não conseguia mais abraçar sua própria irmã, e isso a matava por dentro. - Sophie!

 A garota se afastou como se tivesse tomado um choque. Sua franja cobriu sua testa, e ela ficou em silêncio choroso enquanto que Julie continuava. - Eu... - Começou, sem saber o que dizer. O que alguém diria em sua situação? Já podia sentir a escuridão tomar conta de si. Não tinha muito tempo. Encarou o rosto tão igual ao seu e abriu a boca, mas nada saiu, exceto lágrimas pelos olhos. Fechou os lábios, tremendo. Sentia que deveria dizer alguma coisa, mas estava tão difícil. Tão doloroso. Engoliu em seco, sentindo o sangue quente na garganta. Procurou respirar, e não conseguiu. Estava quase na hora. Sorriu. - Me... desculpa.

 E com isso ela fechou os olhos, e Sophie gritou. Gritou mais alto do que nunca, mais alto até do que o próprio demônio atrás dela conseguiria. Deixou a cabeça cair perto da irmã, no momento em que o restante da guilda chegou, tarde demais para fazer alguma coisa. Apenas observaram a companheira caída, a mesma que haviam amado e que agora os deixava, a mesma que havia salvado tudo o que conheciam. Ela, que por tantos anos lutou por seu espaço, agora descansava em paz.

 Pois Julie havia brilhado, tão forte quanto uma aurora.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Aurora: Capítulo 48 - As trevas em seu ápice


AURORA
CAPÍTULO 48: AS TREVAS EM SEU ÁPICE

 Chovia terrivelmente.

 A tempestade que estivera se formando lentamente agora despencava tal qual uma cachoeira no mar de Cellintrum, particularmente em cima de uma fortaleza flutuante no meio do oceano, uma massa negra que se abrigava entre o mar agitado e as nuvens clareadas por relâmpagos. Fortaleza esta que estava em pedaços. Os navios ancorados a ela se chocavam contra a murada, alguns caindo e suas tábuas de madeira se despedaçando contra as rochas. O topo de uma das duas torres estava arruinado, e diversas construções tinham se desfeito, com seus destroços sendo levados pela chuva torrencial. Por cima dos casebres ainda em pé, havia um vulto colossal em uma das extremidades da ilhota artificial, cercado por pilares curvados e com um enorme cristal branco em seu peito. De perto dele, vinha uma estrada de destruição que se infiltrava para o interior da fortaleza, agora abrigando um mirrado e veloz córrego causado pela chuva. Essa rota terminava bruscamente, formando uma clareira entre os edifícios escuros. E nele, haviam três figuras de costas para cima.

 Duas delas se levantaram com dificuldades. Uma tinha cabelos curtos e azuis, vestida com vestes cinzas e rasgadas, e se apoiava com os dois braços no chão estraçalhado. Outro era um golem marrom de quase dois metros e meio, que estava sentado com a mão no peito. Mesmo com a chuva forte, era possível ver seu rosto em pânico silencioso, e seu queixo se abaixou para observar seu tórax.

 A figura menor passou a mão pela testa, afastando a franja encharcada. Sasha ainda estava se recuperando, a dor penetrando fundo nos ossos. - O que... - Tentou dizer, uma mancha de sujeira na bochecha sendo lavada pela chuva. A última coisa que se lembrava era de um clarão, e um vulto à sua frente. Levantou a cabeça, encontrando seu companheiro Wieder. Contudo, havia algo mais chamativo. O enorme demônio mais à frente, iluminado pelos raios. Os olhos da garota se arregalaram, o medo a invadindo como uma horda de bárbaros. Era o tipo de visão que enlouqueceria a maior parte das pessoas. Ela continuou em sua posição, os braços tremendo enlouquecidamente. - E-ele... conseguiu... - Deixou o queixo despencar, os destroços abaixo se embaçando. - Falhamos.

 Wieder continuou calado.

 Sasha engoliu em seco, o suor se misturando com a chuva forte. Desaad havia conseguido invocar seu demônio, Maedegoen, e agora iriam trazer Zemopheus. Era o terror de todo habitante daquele lado da Fronteira, o tipo de pesadelo que poderia deixar alguém pregado durante a noite. O maior inimigo de todas as raças da Aliança, o ser que havia sido o mal primordial desde as eras em que apenas os elfos viviam, o responsável pela eterna guerra que travavam... estaria ali em pouco tempo.

 Era preciso muita força de vontade para fazer algo diante daquele desespero. Para se mover com aquele medo paralisante. No entanto, Sasha Alba não era uma garota comum. Era a filha dos fundadores da Aurora, e o lema da guilda continuava em sua cabeça. Ser a luz entre as trevas. Não poderia desistir agora. Ficou de pé, tentando pensar no que fazer. Se lembrou de Dalan, e girou o corpo para procurá-lo. Ele estava um pouco afastado, e continuava imóvel. - Dalan. - Disse em voz alta, e correu até o rapaz. Wieder os encarou, mas permaneceu em silêncio.

 A garota se ajoelhou ao lado do companheiro, pondo a mão em seu pescoço. Ainda havia pulso, fraco, mas havia. Suspirou aliviada, embora não tanto assim. Ele ainda estava desmaiado, com uma série de ferimentos cobrindo o corpo. Não parecia que iria acordar tão cedo, mas já havia feito sua parte, derrotar Desaad sozinho. Cabia aos outros agora continuar na luta.

 Sasha considerou suas opções, deixando os olhos girarem pela clareira de destroços. Não poderiam derrotá-lo com apenas duas pessoas. Sua única opção era sair dali e alertar a Aliança, atravessando a tempestade em um dos navios. Era um plano tremendamente arriscado pelo tempo que iriam levar, mas não havia outro melhor. Sua visão pousou na estrada de destruição que o demônio havia causado com seus golpes, e um peso gélido caiu em seu estômago. Mesmo que conseguissem sair dali, ainda estariam sob ameaça. Alguém precisaria ficar para distraí-lo. Engoliu em seco, sabendo que era seu trabalho. Cuidar da Aurora. Já tinha as palavras em sua boca, vindas do passado.

 - Wieder... - Começou, sentindo os lábios secos mesmo através da chuva. - Quero que você... - Sentiu uma mão de pedra em seus cabelos recém-cortados, e quando levantou a cabeça viu que o golem estava atrás dela, olhando para o demônio.

 - Eu cuido disso. - Disse ele, sem encarar a outra. Ela estreitou os olhos, e se levantou.

 - Não. - Disse firmemente. - Não, essa é a minha tarefa. Tenho que garantir que vocês--

 - Você não vai durar muito tempo. Não nessas condições. - Interrompeu o anão. Ele olhou para baixo, notando o braço direito da garota, pendendo inútil ao lado do corpo. Voltou a encarar a figura gigantesca. - Sabe disso.

 Sasha fitou o chão, fechando com força a mão esquerda. O companheiro estava certo, e não tinham tempo para discutir. Se abaixou para levantar Dalan, o apoiando no ombro sadio. Quando voltou a ficar de pé, rangeu os dentes enquanto desviava o olho do golem. Se recusava a tratar aquilo como uma despedida. - Vou sair daqui e chamar a Aliança. Prometo que não irei demorar. - Não houve resposta. Ela começou a andar, se dirigindo até os casebres remanescentes. Wieder ficou parado por alguns segundos, pensativo enquanto que a chuva descia por sua pele de ronatto. Ela pingava em um determinado ponto do tórax, onde não havia mais para onde descer.

 Pois havia um rombo no peito do golem.

 Sasha seguiu seu caminho, cambaleando com o peso de Dalan. Se esforçava para ser mais rápida, mas o amigo não conseguia sequer se equilibrar sozinho. A chuva não contribuía, tornando-os escorregadios e alimentando diversas poças no meio do caminho.

 A garota se obrigou a parar na parede de um prédio para recuperar as energias, apenas alguns metros de onde tinha saído. Estavam protegidos por uma sacada, mas o lugar continuava úmido e fedorento. Ela deixou o companheiro no chão e passou as mãos no braço dilacerado com uma careta de dor. Embora as feridas já estivessem se cicatrizando, graças às habilidades naturais de cura dos yullianos, não significava que estivessem confortáveis. Se apoiou na lateral do edifício, respirando fundo com os olhos fechados.

 Ouviu um chapinhar atrás dela, mais alto que o barulho da chuva. Se virou para trás, e no mesmo momento que avistou um vulto pulando em sua direção, ele a derrubou. Bateu com a cabeça no chão e estrelinhas pipocaram em sua visão. Entre elas, estava o rosto inchado, sangrento e roxo de Jones, que ainda assim conseguia manter uma expressão de triunfo louco.

 - Hoje você não me escapa. - E com isso, sua mão cheia de garras foi direto no coração de Sasha. Sangue espirrou alto.

 Do outro lado da fortaleza, Wieder andava pensativo. Estava em seus últimos passos. Havia se posto entre seus companheiros e o golpe de Maedegoen, e isto havia lhe custado a vida. O rombo no peito não era fatal em sua forma de golem, mas assim que voltasse ao normal, estaria morto.

 Era... difícil, no mínimo, aturar aquele pensamento. De que seu tempo estava contado. Não sabia como responder àquilo. Ele ainda não tinha penetrado fundo em sua mente. Parecia apenas um pesadelo, uma irrealidade que logo seria corrigida. Só que não seria. Não iria sobreviver. Seus sonhos estavam arruinados. Nunca faria seu nome. Vivera tanto para... nada.

 Teve que parar, um misto de raiva e descrença tomando conta de seu corpo trêmulo. Controle-se, se ordenou com esforço. Ainda tinha um trabalho a fazer. Percebera isso quando avistou Sasha e Dalan. Teria que ganhar tempo para que se salvassem. Podia ouvir a voz de Dominic em sua cabeça, rindo. No final, lutaria pelos sonhos dos mais jovens. Os deuses deveriam estar gargalhando.

 - Ora, ora... - Uma voz cortou seus pensamentos. Levantou a cabeça, vendo que não estava sozinho naquela estrada de destruição. Desaad estava do outro lado, aproximadamente no meio do caminho, coberto pela chuva densa. Haviam formas negras coladas ao seu corpo, e uma olhada mais atenta revelou que era um braço esquerdo feito das rochas da fortaleza, assim como um preenchimento que tapava o ferimento em seu abdômen, causado na luta anterior. Ele riu. - Bem que achei que alguém ia tentar ser o sacrifício corajoso!

 - Ah, cale a boca e morra de uma vez. - Disparou o anão, cansado. - Quantas vezes tem que voltar até que acabemos de vez com você? Sasha e Dalan já o derrotaram. Quer fazer uma trinca?

 Aquilo pareceu irritar o líder do Culto Púrpura, cujo rosto se contorceu. - Fale o que quiser, inferior, mas nada que fizer aqui irá ter alguma diferença. - Ele abriu os braços disformes, e um raio se derramou no oceano. - Maedegoen já está procurando meu lorde Zemopheus graças ao contra-encanto que a Aurora me forneceu. É uma questão de tempo até trazê-lo de volta.

 Wieder juntou as duas mãos. - Então as apostas estão mais altas! - De alguma forma, ele gostou daquilo. Era sua última luta. Sua última chance de fazer seu nome, mesmo que não fosse tirar proveito depois. Iria aceitar essa oportunidade. - Vou acabar contigo!

 - Vou acabar contigo! - Gritava Jones, tentando fincar seus dedos no coração de Sasha. Ela havia conseguido colocar a mão direita entre seu corpo e o velho para se proteger, mas parecia que tudo que tinha ganho era tempo e mais uma palma dilacerada. Sentia uma garra arranhar o espaço entre seus seios, rasgando a camisa cinza cinza e a pele. A dor na mão era inacreditável, e usava todo seu esforço para manter o adversário afastado e não desmaiar. - Está me ouvindo?! - Cuspiu o homem, usando a mão livre para tentar arrancar os olhos da outra.

 Ela afastou instintivamente a cabeça, e sentiu algo lanhar sua testa. O sangue se derramou mais uma  vez, e a garota levantou as pernas, jogando o velho para longe. Se levantou cambaleante, girando para enfrentá-lo, e se surpreendeu ao ver que ele corria em sua direção, ensandecido. Conseguiu se abaixar de um golpe contra sua cabeça e saltou para trás para esquivar de outro contra seu estômago, mas pisou em uma poça e se desequilibrou. Derrapou rapidamente para se manter em pé, e Jones surgiu para atacar. Três garras cortaram seu ombro direito, passando pelo ferimento antigo e descendo até as costelas. Ela gritou, e o grito foi entrecortado pelo pé em seu peito que a jogou para trás, caindo na chuva pesada.

 Rolou nas poças, a chuva lavando o sangue que escorria. Tateou para se levantar e sentiu a mão esquerda destruída, fazendo-a cair novamente. Um chute na barriga a fez perder o ar, engolindo água em sua ânsia por respirar. Foi agarrada pelo pescoço e virada para cima, vendo a mão que descia em sua direção. Teve tempo de ranger os dentes antes de chutar com o pé direito o braço do adversário para longe, e aproveitou o movimento para voltar e chutá-lo na cabeça. Ele se afastou, segurando o ferimento, e Sasha levantou para se afastar.

 Aquilo estava ficando ridículo, pensou com o cabelo molhado nos olhos. Já havia derrotado Jones antes, não deveria ter que fazer aquilo de novo. Só que dessa vez era diferente. Tinha enfrentado o próprio líder dos Libertadores, Desaad e Maedegoen desde então. Seus ferimentos minavam suas forças, especialmente o rombo na mão esquerda e os cortes que atravessavam seu tórax. Havia perdido sangue demais, notou, um dos olhos mais aberto que o outro. Não aguentaria mais muito tempo.

 - Vai desistir? - Perguntou o velho, a loucura brilhando em seu olhar. Sasha se empertigou. Wieder estava se sacrificando para ganhar tempo. Os segundos que lhe restavam eram desesperadores, e não podia gastá-los em vão.

 - Já chega de você, Jones. - Disse ela, fincando o pé esquerdo em uma poça e girando o corpo, protegendo o braço incapacitado. Tinha suas pernas e o cotovelo canhoto. Teria que bastar. - Que queime no inferno de onde saiu. - E com isso, disparou para a luta. O chão estremeceu.

 O pequeno terremoto tinha seu epicentro um pouco mais longe, onde o piso se recurvava e virava a cabeça de um dragão, que se esticou para atacar Wieder. Ele tomou impulso e desferiu um soco, quebrando a mandíbula da conjuração. Três pilares serpenteantes saíram da criatura agora disforme, e se amarraram nos braços do anão, que os partiu sem muita dificuldade. - Terá que fazer mais do que isso! - Gritou para Desaad, que já estava a caminho. Tentou golpear com o braço de pedra, e o golem o segurou com as duas mãos. O impacto no entanto foi tão forte que ele deslizou através do córrego no meio da rota de destroços. O demônio mais à frente rugiu, e o anão foi lembrado que não tinha muito tempo. Precisava alcançá-lo.

 Correu, mas não deu cinco passos antes dos casebres mais próximos se desfigurarem, formando dois aríetes que o prensaram com brutalidade. Sentiu o ronatto trincar e caiu no chão, sem forças, e Desaad se aproximou. - Do jeito que eu gosto. Aos meus pés. - Se aquilo era para irritar Wieder, funcionou com louvor. O membro da Aurora juntou as duas mãos e atacou de baixo para cima, esmurrando o quadril do adversário pelo seu lado esquerdo. Ele caiu gritando em uma das inúmeras poças d'água, e rapidamente convocou um apoio de rochas negras ao redor da área quebrada.

 Isso vai durar para sempre, pensou o anão. Se levantou e tentou pisotear o líder do Culto Púrpura, que fez um bloqueio negro para se defender. Estava sem forças, no entanto, e o golem sentiu as rochas abaixo tendo dificuldade em segurar a força de seu golpe. - Faça-me um favor, Desaad! - Gritou para ele, tentando ser entreouvido no meio dos raios. - Fique...

 - ... no chão! - Berrou Sasha, se abaixando e chutando Jones no queixo. Ele engoliu seu dente quebrado, e voou alto antes de cair no chão com força. A água espirrou alto, e antes de cair a garota já estava em cima do adversário, o pé molhado em seu pescoço. - Me ouviu? - Perguntou, pisando com mais força. Aquela não era uma luta difícil, pensou, se recriminando por ter penado tanto. Era necessário tomar o controle, e não perderia.

 O problema, como ela perceberia, era sua exaustão. Havia sofrido muito desde que chegou àquela fortaleza, tanto físico quanto emocionalmente. Ela avistou o braço do velho se mover, mas não foi rápida o suficiente para recuar. Ele perfurou sua perna um pouco abaixo do joelho, atravessando os músculos como se fosse manteiga. A membro da Aurora gritou e caiu para trás, se afundando em uma poça. Jones já começava a se levantar, abastecido pela loucura.

 - Eu disse que ia acabar com você. - Soltou para a garota que ainda agarrava a perna com as duas mãos. Estava finalmente  à sua mercê. - Vou arrancar sua cabeça e levar para seus companheiros. E então vou matar aquele garoto idiota e a vagabunda de cabelos castanhos, e depois--

 - Você me chamou de quê? - Jones olhou para a esquerda, bem a tempo de ver um soco em sua direção. O golpe fraturou seu nariz em um instante, o jogando para o chão. Ele tentou se levantar, mas um bastão dourado o derrubou de vez. Sasha arregalou os olhos, achando que a chuva estava lhe pregando uma peça. No entanto, uma mão familiar se ofereceu a ajudá-la. Era Amanda.

 - A-Amanda... - Disse sem acreditar, aceitando o auxílio e se apoiando na companheira por causa da perna ferida. Olhou por trás do ombro dela, os olhos arregalados. Koga a encarava mais perto, e na cobertura onde havia deixado Dalan, estava o restante da Aurora. Dominic, Julie, Sophie, até mesmo Kulela, Lyra e sua mãe. - O... o que aconteceu? - Perguntou com a voz fraca.

 - Viemos aqui para salvá-los. - Disse Stella, ao lado do reptiliano e de Dalan. - Desculpe-nos pela demora.

 - Esse aqui está bem. - Avisou Kulela, dando uns tapinhas no rosto do garoto adormecido. - Só precisa de uma infusão para recuperar as energias. - Levantou a cabeça, olhando para os companheiros. - Alguém se habilita a fazer isso para economizar meu tempo?

 - A-ah. Eu faço. - Respondeu Sophie, os olhos arregalados. Pegou um pacote verde com o curandeiro enquanto que Amanda e Sasha chegavam ao local. Amanda deitou com cuidado a amiga, que continuava confusa.

 - Ainda não entendi. - Confessou. - Onde vocês estavam?

 - Eu tinha ido com Kulela e Lyra para Helleon, onde recolhemos e compramos o que era necessário para socorros de emergência. - Começou Stella, olhando com sofrimento para os ferimentos da filha. que ficou pensativa. Não tinham dinheiro para isso. - Foi um excelente plano, visto o estado em que encontramos vocês.

 - Não que seja a melhor coisa do mundo. - Interrompeu Kulela, passando um pano mal-cheiroso no ombro de Sasha. - Só o suficiente para que fiquem em pé depois das perfurações e braços quebrados. Vamos ter um longo trabalho quando voltarmos à sede. - A garota desviou o olhar. Helleon parecia tão longe...

 - Onde estão Marcus e Wieder? - Perguntou Stella, cortando seus pensamentos. - Só precisamos buscá-los antes de irmos embora daqui. - Sua filha abriu minimamente a boca, tentando falar através do rosto cheio de dor. Deixou o queixo abaixar,

 - Marcus... - Não teve como continuar a falar, pois o ambiente se cobriu de roxo. Todos olharam para cima, percebendo que a chuva havia parado. Koga andou para o terreno descoberto, pisando sem perceber em uma poça funda. O rapaz tremia, e não era o único. Por toda a fortaleza negra, uma camada púrpura cobria os céus, se estendendo por todo aquele território. Sasha sentiu o coração parar. Havia esquecido do demônio.

 Wieder, por sua vez, se recordava perfeitamente. Olhou para baixo e percebeu a expressão triunfal de Desaad, ainda se protegendo pela camada de rochas. O anão pressionou ainda mais, aproximando o rosto. - O que diabos está acontecendo? - Perguntou por entre os dentes.

 - Maedegoen conseguiu. - Avisou o homem, sorrindo abertamente. - Ele localizou lorde Zemopheus! Agora estamos a caminho! - O golem olhou para cima, encarando o céu roxo. Não se lembrava de tamanho temor ter passado por sua alma. Do outro lado, o demônio continuava seu trabalho, o cristal em seu peito. O material branco reluziu nos olhos vermelhos de Wieder. Havia uma chance, considerou. Apenas uma chance.

 Se desvencilhou de Desaad e desatou a correr na direção do demônio.

 Corriam também Dominic e Stella, acompanhados de perto pelo restante da guilda. Eles pararam na beira do espaço onde Sasha havia acordado, e avistaram a estrada de destruição. Maedegoen estava do outro lado, segurando os pilares que o rodeavam. Aquela visão foi o suficiente para paralisar os membros da Aurora, até que Sasha avistou a figura solitária que corria na direção do demônio.

 - WIEDER! - Gritou, tirando os companheiros do transe. Amanda arregalou os olhos e tentou correr, mas foi contida por Dom.

 - Me solta! Ele está indo na direção daquela coisa! - Berrou ela, tentando se soltar. O homem por sua vez estava vidrado na cena, ainda tentando entender porque tinha impedido a companheira. E então, uma chave girou em seu cérebro.

 - SE PROTEJAM! - Gritou, carregando a garota para o lado. Os outros ainda estavam estupefatos, e foi necessário mais um incentivo. - ANDEM! AQUILO VAI EXPLODIR!

 Wieder, de certa forma, sabia daquilo. Ouvira histórias sobre a guerra além da Fronteira, onde o sombrio reinava. Sabia que demônios usavam constantemente cristais para suas tarefas, e destruir um significava caos. Só que não importava. Era a única chance deles. Pegou um destroço do chão enquanto corria, uma rocha praticamente do tamanho de um humano recém-nascido. Seria sua arma. Que os deuses a abençoem.

 - TEMOS QUE AVISÁ-LO! - Gritava Amanda, contida à força por Dom e Koga. Estavam a arrastando para a proteção dos casebres, bufando a cada passo. Julie também a puxou, e percebeu Desaad na estrada destruída. Virou o rosto sem contar para ninguém. - WIEDEEEER!

 O anão seguia em frente. Se lembrou de sua família. Você não tem mais idade para perseguir esse tipo de coisa, diziam eles. Apenas se foque em seu trabalho. Sorriu. Como estavam errados.

 Dalan acordou, percebendo o alvoroço ao seu redor. - O que aconteceu? - Perguntou meio grogue.

 - Wieder... Wieder está indo enfrentar aquela coisa. - Disse Sophie, com lágrimas nos olhos. - A gente acha que ele vai... ele vai... - Não conseguiu completar, mas o rapaz havia entendido. Rangeu os dentes e tentou se levantar, impedido pela companheira. - Não vá, por favor! - Chorou em seu ombro.

 - Wieder... - Soltou o garoto, sem conseguir acreditar no que estava acontecendo.

  O anão corria. Já estava muito próximo para recuar. O demônio não o olhava, preferindo levar seus olhos para o céu. Não parecia algo significante. Se pudesse, o membro da Aurora estaria suando o suficiente para largar seu projétil improvisado. De alguma forma, só conseguia pensar nos companheiros, especialmente os mais jovens. Que vocês não demorem como eu.

 - WIEDEEEEEEEEEEEEEEER! - Berrou Amanda.

 O anão girou o corpo e arremessou a rocha. Ela rodopiou no ar, expelindo as últimas gotas d'água que teimavam em permanecer na superfície. O cristal branco no peito de Maedegoen era seu alvo, e não iria errar. Acertou o objeto com toda a força que um golem obstinado podia juntar, e tudo pareceu explodir. O demônio gritou mais alto do que os trovões, o material brilhou em vermelho e amarelo, engolfando a plataforma circular em uma explosão multicolorida. Wieder também foi atingido, e fechou os olhos enquanto era destruído. Um sorriso se formou em seus lábios enquanto dava seu último pensamento antes de bater no portão dos mortos.

 Wieder, aquele que se opôs contra um demônio. Gostava do tom daquilo.

 - NÃÃÃÃO! - Gritou Amanda, caindo nos braços de Dominic. Chorava copiosamente, e lágrimas também estavam no rosto do homem. O impacto da explosão chegou até eles, trazendo consigo o som e a fumaça. Berraram e se abaixaram, procurando se proteger. Alguns prédios se desfizeram, desmoronando sem cerimônia e contribuindo para o som do apocalipse que rodeava os membros da Aurora. E, de repente, o silêncio. Apenas ele e a fumaça que os envolvia.

 Sasha foi a primeira a se levantar, um vulto naquela visibilidade diminuída. Estava lívida de raiva, as lágrimas contidas pelo aperto das bochechas. Conseguia ver Maedegoen do outro lado, ainda gritando. Chega, pensou ela. Já tinham perdido gente demais.

 - ESCUTEM! - Gritou para os companheiros, que se levantavam debilmente ao seu redor. - Nós fomos sequestrados. Obrigados a vir aqui por causa de um maluco que se julgou acima da própria Aliança. - Se virou para eles, olhando fundo na direção de cada um. - Cada um de nós lutou por sua vida. E vencemos. Marcus e Wieder até morreram para vencer, mas a Aurora está de pé! - Gritou as últimas palavras. - E eu digo para vocês, estou disposta a fazer o sacrifício deles valer a pena! Que não morram em vão! Vou acabar com esse demônio e honrar meus companheiros caídos! - Não havia como não acreditar na vitória agora. Sua alma queimava demais para a lógica. Só havia a missão. Ser a luz na hora mais negra. Fechou os punhos com força, se virando para Maedegoen. - A AURORA NÃO TARDARÁ! QUEM ESTÁ COMIGO?

 - Eu. - Grunhiu Dalan, ficando de pé. - Desaad os trouxe aqui por minha causa. Não vou deixar que ele mate mais nenhum de vocês.

 - Nem eu. - Se prontificou Amanda, fungando e limpando as lágrimas dos olhos. - Chega de mortos. Vamos voltar para casa. Juntos.

 - Sim. - Foi a vez de Sophie se levantar. Sua irmã a olhou com surpresa. - Vamos dar o nosso máximo para derrotar essa coisa.

 - Não deve ser tão difícil. - Soltou Koga, batendo o bastão no ombro.

 - Continue achando assim. - Sorriu Julie, se apoiando em um joelho. - E não vamos ter nenhum trabalho.

 - Hah. - Riu Dominic. - Não fiquem tão arrogantes assim.

 - Ou vou ter mais trabalho na hora de consertar vocês. - Disse Kulela.

 - Eu também vou. - Anunciou Lyra, puxando um arco que estava às suas costas. - Chega de acompanhar dos bastidores.

 - Digo o mesmo. - Acompanhou Stella, estreitando os olhos. - É a hora em que lutamos todos juntos.

 - Por Wieder e Marcus. - Começou Sasha, dando um passo à frente. A poeira já havia se esvainecido, revelando o caminho destruído e Maedegoen no fundo. Ele os encarava. - E pela Aurora. - Começou a correr, gritando com toda a força da sua alma. Os outros a acompanharam, cada um por seus motivos e todos por um. Defender a guilda.

 Dispararam para a luta, aquela que seria a última que travariam juntos.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Aurora: Capítulo 47 - A noite mais escura


AURORA
CAPÍTULO 47: A NOITE MAIS ESCURA

Grandes raios brancos surgiam no céu chuvoso, entrecortando as nuvens com brilhos cegantes, e pequenos raios azuis saíam dos olhos de Dalan, pipocando com zumbidos baixos. Ele encarava o caído Desaad do outro lado, uma camada grossa de gelo preenchendo o espaço entre os dois. E, em seus braços, estava uma mortalmente ferida Amanda, com um grande rombo em seu abdômen.

 Dalan pôs a mão no ferimento da companheira, produzindo uma fina cobertura gelada para estancar o ferimento. Fez a mesma coisa no outro lado, esperando que aquilo fosse salvar sua vida por um tempo. Pelo menos enquanto cuidava de outro assunto. Levantou a cabeça para o adversário, as órbitas completamente preenchidas se estreitando.

  - Azul. - Disse o líder do Culto Púrpura, se levantando com a mão no joelho. Se empertigou, o cabelo brilhando na chuva. - Cor da alma. Normalmente é o que se consegue quando se atinge o Indramara. - Ele parecia um pouco pálido, mas não havia sinal de nervosismo na voz. - Não que isso vá funcionar.

 O rapaz não respondeu, apenas conjurou uma rudimentar cama e nela cuidadosamente deitou Amanda. Prometo voltar rápido, prometeu em silêncio. Ouviu um som atrás de si e sequer pensou, girando o corpo e estendendo a mão com uma fúria reaquecida. Um aríete saiu de sua palma, acertando Desaad bem no estômago e o arremessando para o outro lado da praça. 

 Dalan fincou os pés no chão e abriu as mãos, juntando suas energias. Sentia que podia fazer qualquer coisa, como se houvesse uma porta escancarada entre ele e boa parte de seus poderes. Sequer pensava no que fazer, apenas agia. Com isso criou um maremoto de gelo, engolindo o adversário com um estrondo.

 O homem foi atirado contra um dos casebres da vizinhança, sendo pressionado pelas ondas conjuradas. Isso é ridículo, pensou ele com os olhos arregalados de fúria e medo, a chuva pingando em seu nariz. Estava enfrentando um moleque. Mesmo com o Indramara, ele deveria ter atingido apenas a segunda esfera de seus poderes. Seria tão forte assim? O pensamento fez com que a raiva suplantasse o temor. Não podia deixar isso acontecer. Tinha ido muito longe para perder.

 Gritou e bateu as mãos no chão, e espinhos roxos cresceram e destroçaram o gelo. Em seguida entrelaçou rapidamente os dedos e girou os pulsos. Um raio desceu dos céus e acertou o centro da praça, explodindo com um estouro ensurdecedor. Quando a poeira baixou, Dalan continuava de pé, atrás de um muro transparente que o protegia junto com Amanda.

 Ele percebeu que tinha de afastar o adversário dali o mais rápido possível. Correu para frente, juntando energia gélida nas mãos. Desaad tentou lançar os espinhos contra ele, mas o rapaz agitou o braço esquerdo, criando uma camada grossa que o protegeu. Um ferrão chegou a cortar seu rosto, mas ele ignorou. Quando chegou perto do rival fincou os pés no chão e girou o braço para frente. Uma massa disforme acertou o outro, fazendo-o atravessar uma sequência de casebres. 

 Ainda estava se recuperando no meio dos destroços quando Dalan chegou. Ele conjurou uma rocha, derrubando-a em cima do rival. Desaad saltou para trás e abriu os braços, invocando um mar de energia verde para acertar o garoto. Ele por sua vez criou um construto de gelo do mesmo tamanho, e os dois colossos se chocaram em pleno ar. O impacto foi o suficiente para arrasar a região ao redor, subindo uma nuvem de poeira negra. Quando ela abaixou, os dois tinham cobertos os membros com os poderes, o membro do Culto Púrpura usando espinhos roxos e o da Aurora gelo afiado e pontudo. E partiram um pra cima do outro. 

 Trocaram golpes o mais rápido que conseguiam, atacando e se defendendo em uma miríade confusa no meio da chuva cada vez mais forte. Dalan desferiu um soco, mas o adversário se abaixou e tentou chutar seu estômago. Conjurou do chão uma pequena parede para se proteger e deu uma joelhada nela, arremessando-o contra as pernas do outro. Desaad caiu, mas esticou a mão e um ramo de espinhos envolveu os braços do garoto, cortando o gelo e rasgando sua pele. Ele por sua vez os cobriu com mais gelo, e juntou as mãos para envolvê-los com uma esfera que usou para marretar as costas do homem. Sangue foi espirrado e ele girou o corpo, se afastando. Seus olhos brilharam em amarelo, tentando usar o mesmo feitiço de medo que funcionara antes, mas a cobertura azul do rapaz o protegeu. Um raio piscou em suas órbitas e ele gritou, formando um novo aríete que arremessou o rival contra os casebres, demolindo o edifício. Parou para recuperar o fôlego, respirando avidamente.

 - Chega. - Ordenou Desaad. Ele estava ajoelhando no chão, segurando o braço esquerdo com uma das mãos. - Não vou te deixar vencer, moleque. Não quando eu tenho a vantagem do terreno. - Ele conjurou uma nova camada de espinhos, segurando-os bem perto do cotovelo. Encarou o garoto com os olhos furiosos, os dentes rangendo. - Conjurei essa fortaleza com este propósito. Aqui, não serei derrotado. - Olhou para baixo, respirando fundo. - Ó CONSTRUTO DE GAERA TYWIL, RECEBA ESTE SACRIFÍCIO PELOS ESPINHOS DE NIGERROSA! POR SEU LORDE, ZEMOPHEUS! - Com um movimento da mão, seu antebraço estava no chão, coberto pela tempestade de sangue que saía do corte. O homem berrou, o suor gotejando pela sua testa. Mesmo assim, se forçou a olhar para o garoto, e um sorriso se formou em seus lábios pálidos.

 Naquele momento a terra tremeu, e o membro cortado foi engolido pelas rochas negras. Em toda a fortaleza, um brilho roxo saiu das frestas das ruelas e dos prédios, iluminando as gotas de chuva. Raios dançaram no céu, e do chão veio um som gutural que suplantou os trovões. Desaad agora ria como um maníaco, o braço decepado ainda sangrando incessantemente.

 - SE ACHA QUE SEU INDRAMARA IRÁ TE PROTEGER, DESISTA! - Algo se agarrou aos pés de Dalan. Ele olhou para baixo, percebendo que o próprio piso havia se enrolado ao redor dele. Ouviu um som à frente e levantou a cabeça, avistando o dragão de rochas negras que vinha em sua direção. Fora atingido em cheio, sendo arremessado para longe. Quando caiu, foi segurado pelos braços e pernas e uma mão de pedra caiu em cima dele. O garoto tentou conjurar um teto de gelo para protegê-lo, mas não era o suficiente. Seu corpo foi esmagado, os ossos rangendo audivelmente. E não era o fim.

 O chão tratou de cuspi-lo, catapultando-o até o outro lado da fortaleza. Enquanto estava no ar, quase desmaiado, diversas rochas o seguiram. Percebeu o perigo e tentou se proteger dos projéteis em sua direção, mas embora dançasse ao redor de si mesmo para evitar os ataques, não era rápido o suficiente. Uma rocha acertou seu nariz, quebrando-o facilmente. Outra foi direto em suas costelas, e a partir daí ele não conseguiu mais manter a concentração. Brutalmente espancado, não percebeu que havia caído até o piso se revolver abaixo de si, se levantando como uma mesa.

 - Agora... vamos acabar com isso. - Era a voz de Desaad, posicionado entre o garoto e a plataforma de espigas curvadas, colossal atrás dele. Dalan sentiu algo esmagar suas costas e cuspiu sangue. Estava em uma prensa no formato de uma concha, e o líder do Culto Púrpura estava à sua frente. Não conseguia se mover, deitado e prensado pelas rochas. - Prefere desistir agora ou quebrar todos os ossos?

 O garoto não respondeu, preferindo conjurar pilares de gelo para se soltar. Infelizmente não tinha força o suficiente, e as rochas o prensaram de novo. Não conseguiu contar quantos ossos estalaram. - Bem, creio que você vá se quebrar todo antes de sair daí. - Desaad estava rindo, mesmo com o rosto terrivelmente pálido. O cotoco em seu braço havia sido cauterizado de alguma maneira, mas ainda era um cotoco. - Agora, é só esperar seu tempo de Indramara acabar...

 O coração de Dalan bateu mais forte. Não podia deixar as coisas acabarem daquele jeito. Buscou uma força oculta dentro de si, e com surpresa encontrou. Estava lá, quase como uma esfera azul dentro de si. Tocou-a, e naquele momento os raios em seus olhos se intensificaram. Seu corpo começou a tremer, os músculos estalando e a cabeça girando. Sentiu calor e depois frio, uma sensação intensa que se espalhou pela pedra em que estava preso.

 E, de repente, quatro enormes pilares de gelo foram conjurados ao seu lado, empurrando as rochas negras para cima e para baixo. Os olhos de Desaad se arregalaram com tanta força que poderiam se arrebentar, e ele esticou a única mão para frente. Os prédios inteiros se desfizeram atrás do garoto e marretaram a plataforma superior de sua prisão. O gelo chegou a rachar, mas se manteve firme. E, depois de alguns segundos tremendo, recomeçou a subir.

 Relâmpagos estouravam dos olhos de Dalan a cada segundo. Ele se levantou, a fresta em que estava agora tão alta que conseguia ficar de pé. Ficou alguns segundos parado, olhando para o adversário, os quatro pilares suportando a pressão do que parecia metade da ilha. Os joelhos do líder do Culto Púrpura tremeram. O que estava acontecendo ali? Seria o Indramara tão poderoso para atingir... a terceira esfera? Não era possível!

 Ainda pensava nisso quando o garoto pulou para o chão, formando uma lâmina em sua mão direita. Caminhou em sua direção, a mente fixa em um único objetivo. Derrotar Desaad. Derrotá-lo para salvar seus amigos. Derrotá-lo pela Aurora. O homem gritou e as pedras que formavam a prensa se agitaram, formando um novo dragão de pedra que tentou atacar o rapaz pelas costas. Um escudo de gelo foi conjurado, e aguentou a investida com um impacto que explodiu as ondas mais próximas. O mar se revolveu, ampliando a chuva, e de repente Dalan estava na frente de Desaad.

 - Agora já chega. - Não deu espaço para uma resposta de qualquer tipo. Apenas estocou o braço, enfiando a lâmina no estômago do outro. Levantou-o, olhando em seus olhos, o sangue se derramando pelo gelo. O adversário estava estarrecido, a surpresa se tornando maior do que o temor. - Nunca mais chegue perto dos meus amigos. - Ele puxou o construto de gelo, e o homem caiu no chão, as pedras negras ao redor o acompanhando.

 Naquele mesmo instante Dalan saiu do Indramara. Seu corpo pareceu explodir, e ele imediatamente perdeu a consciência, sem ter forças para sequer sonhar.






 - Da... Dal... lan? Dalan! - Conseguia ouvir uma voz ao fundo. Sasha? Não sabia dizer. Se viu levantado por um ombro, apoiado por um corpo pequeno e magro. Seus ossos doíam e não conseguia sequer abrir os olhos, tamanha a exaustão. No entanto, conseguia ouvir.

 - Vamos sair daqui logo! - Gritou outra voz, mais gutural. - Precisamos de cobertura! - Dalan conseguiu perceber um vento imensamente forte agitando seus cabelos. E o pior de tudo, sentiu um frio em sua barriga. Um frio tão terrível que se alastrou pelo corpo, fazendo-o abrir os olhos para ver o que estava acontecendo.

 Estavam entre os destroços da luta dele contra Desaad. Sasha o carregava desajeitadamente enquanto que Wieder, em sua forma de golem, levava o líder do Culto Púrpura. Poeira e pequenas pedras eram aspirados para trás deles, e o rapaz olhou para trás.

 O caos reinava na plataforma redonda dos quatro pilares curvados. As pontas dos construtos estavam brilhando em roxo, a iluminação lentamente se espalhando pelo material. O ar girava no centro do tablado, provocando um gigante redemoinho de quase cinco metros. E em seu interior, havia uma cristal branco do tamanho de um homem. Dalan olhou para aquilo e seus calafrios se intensificaram como nunca antes. - Temos que sair daqui. - Disse com a boca seca, atraindo a atenção da companheira.

 - O que quer dizer com isso? - Perguntou Sasha, e o garoto a encarou em terror.

 - Temos que sair daqui. Agora! - Gritou as últimas palavras, tentando se soltar dela. Havia perdido quanto tempo desmaiado? - JÁ!

 Gostaria de dizer que tinha sido ouvido. Talvez por Sasha, que estava ao seu lado, mas era difícil saber. Pois naquele momento um estouro que varreu a terra os atingiu, saindo do centro da plataforma com os pilares. Foi tão forte que os arremessou para longe, os jogando contra os destroços de rochas negras. Gritaram, sem saber o que estava acontecendo ou sequer onde estavam. Perderam a noção dos sentidos, da audição explodida até o olfato coberto por um cheiro acre. Só recobraram alguma coisa quando estavam no chão, e olharam para trás. Não era, nem de longe, uma visão que qualquer pessoa pretendia ter em sua vida.

 Pois havia um demônio gigante do outro lado, coberto pelos quatro pilares agora opacos. Tinha quase seis metros, o corpo coberto por pelo negro. Seu rosto se assemelhava ao de um gorila, com sabres de marfim na boca que apontavam afiados para cima. Tinha dez olhos, espalhados de forma aleatória na parte superior da face. Era gordo e se apoiava com a ajuda dos braços, gigantescos membros com extremidades roxas. Haviam também pequenas asas emplumadas, de um metro cada, quase minúsculas em comparação ao resto do corpo. O cristal branco de antes estava encrustado em seu peito, brilhando à luz dos raios. Ele os encarou, a miríade de olhos piscando em amarelo. Seu nome era...

 - MAEDEGOEN! - Gritou Desaad, pálido porém insano de tanta felicidade. Ele se levantou para ver o esplendor de sua invocação, e rapidamente se pôs de joelhos, recitando uma língua oculta. - HAETHIN LOPPO BYANGA THATYYN!

 - GOOLAAA... - Replicou o demônio lentamente, e sua voz era o suficiente para estremecer os corações dos mais próximos. A chuva se intensificou, assim como a força das ondas. - ZABALOO DANTA OROSTRA? ZABALOO GAMORA?

 - ZABALAN GAMORA! - Gritou o líder do Culto Púrpura, batendo com o único braço no peito. - FINTAN DANTA OROSTRA! MAERE ZEMOPHEUS! - Pareceu se lembrar de algo. Olhou para Dalan, que estava no chão com Sasha. E sorriu. - OONIT FARA LANTA! ZAUL VINTORI! - Berrou, apontando para os garotos. Que não conseguiam sequer se mover.

 Do outro lado, Maedegoen sorriu, um riso débil e aterrorizador. - AEN... - Esticou a mão. Dela se iniciou um brilho verde, tão forte que poderia eclipsar o sol. Dalan e Sasha levantaram os braços para se proteger, mas não tinham mais forças para fazer nada. De algum modo, sabiam. Já estavam condenados.

 Um raio saiu das mãos do demônio e disparou na direção dos membros da Aurora. Eles conseguiram enxergar um vulto grande à frente antes de todos serem catapultados como moscas. Caíram onde não era possível enxergar, e Desaad riu histérico. Riu porque tinha conseguido. Riu pois tinha feito o impossível. Conseguira descobrir o segredo da Aliança e onde tinham escondido seu mestre. Contactara os demônios do outro lado da Fronteira, e eles lhe deram uma das míticas fortalezas de Gaera Tywill, o que os esconderia dos magos. Sequestrara os membros da Aurora para que replicasse o contra-encanto que protegia Gamora, e quando conseguiu, um dos próprios demônios de Zemopheus veio para que resgatassem seu mestre. Estava tudo perfeito.

 E o melhor de tudo: não havia mais como perder.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Aurora: Capítulo 46 - O Brilho Mais Forte


 Dalan bateu com as costas na parede, o sangue espirrando de sua boca. Viu uma figura se mexendo no quarto escuro e tentou se abaixar para se defender, mas não era rápido o suficiente. O soco veio na direção de seu rosto, tão forte que o fez atravessar a parede atrás de si, caindo entre os destroços do outro quarto. Cuspiu mais um pouco, conseguindo apoiar um braço no chão, mas antes que fizesse qualquer outra coisa foi virado de costas e uma sombra veio em seu pescoço. Fechou os olhos em resposta à morte veloz, mas não sentiu nada. Abriu uma das pálpebras desconfiado, e avistou Desaad acima de si. Ele estava em pé, segurando o que parecia um bidente, que prendia o pescoço do rapaz no chão. Sorriu de forma zombeira.

 - Eu te disse... - Começou, largando a arma fincada no piso. - Não fiquei parado depois de nosso desencontro na Caverna dos Reclusos. Treinei o suficiente para garantir minha superioridade. - Ele se abaixou, o capuz se remexendo por cima de seu rosto alongado e cabelos quase brancos de tão loiros, penteados perfeitamente para trás. - Se não conseguiu me derrotar antes, não terá nenhuma chance agora.

 Dalan rangeu os dentes e pôs as mãos no bidente. Ele era feito de um material metálico e vermelho, o que parecia repelir seus poderes. Tentou desprender a arma do chão com todas as suas forças, o que entreteu o adversário.

 - Pra quê tanto esforço? - Perguntou, andando calmamente até o outro lado do quarto. Se sentou numa poltrona empoeirada, reclinando as costas nas almofadas. - Eu não quero te matar, portanto se acalme. Vamos apenas passar o tempo.

 O garoto o encarou, vermelho pelo esforço e a humilhação. - Cale a boca. - Era tudo o que tinha. Voltou a se concentrar em se soltar, enquanto que o membro do Culto Púrpura o encarava com o queixo apoiado na mão. Se esticou para frente.

 - Sabe, eu realmente estou curioso. - Perguntou com os olhos atentos. - Já deixei claro que não está em perigo. Mesmo assim, quer voltar a lutar e arriscar sua pele. - Voltou a se encostar na poltrona. - Por quê?

 Dalan ficou calado por alguns segundos, recuperando o fôlego. - Você nos sequestrou. - Voltou a tentar arrancar a arma. - Não ache que vou ser enganado. Não depois de tudo que aconteceu conosco. - Suas mãos tremiam no suporte do bidente. - Não vou deixar que machuque meus amigos de novo.

 - Não... quero dizer, sim, claro. Seus amigos. Só que no fundo, o que realmente te motiva? - Indagou Desaad, um pouco agitado. - Digo, pra quê entrou na Aurora? O que te faz ser um membro de guilda? - O rapaz não respondeu, preferindo se concentrar em sair dali. O outro, no entanto, sorria tranquilamente. - É sobre Gamora, não é?

 Dalan parou, os olhos arregalados. Era como se o mundo tivesse congelado, tentando voltar a entrar nos eixos. Ele se virou lentamente para Desaad, ainda repetindo a frase em sua cabeça para ver se tinha entendido direito. - O quê? - Perguntou, a garganta subitamente seca.

 - Gamora! - Respondeu como se fosse a coisa mais simples do mundo. Endureceu o queixo, apontando as mãos para o chão. - Estamos em cima dela no momento. Digo, no lugar que ela ficava. Se não me engano, é aqui que ficava a Cordilheira dos Perdidos.

 - Como sabe... - Estava ficando difícil para o garoto respirar, mesmo com o espaço que o bidente proporcionava ao seu pescoço. - O quê aconteceu com ela?

 O líder do Culto Púrpura sorriu. - Ah, não sabe? Sua preciosa Aliança tentou sumir com esse lugar. - Ele se levantou, começando a andar ao redor do rapaz. - Exilaram o arquipélago para outra dimensão, ansiosos em se livrarem para sempre de qualquer menção dele. Usaram magia poderosa, criança, coisa que corrói a memória das pessoas e qualquer registro físico. Acho que por agora todos os mapas foram alterados, e apenas os Gamorianos conseguem se lembrar desse lugar. - Ele parou ao lado de Dalan. - Quer dizer, exceto os que usam magias tão poderosas quanto. - Esfregou a barra do manto com dois dedos, e apontou para o braço do rapaz com a mão livre. A marca da Aurora o encarou.

 - Eu... - Era demais para o garoto. Não estava esperando por aquilo. Desaad sabia sobre Gamora, perguntou para si mesmo. E o que tinha acontecido com ela? Estava falando a verdade? A Aliança tinha algo a ver com isso? Desviou os olhos, procurando entender a reviravolta que havia acabado de presenciar. 

 O outro sorriu ao ver a confusão no rosto de seu adversário. - Sabe, acredito que pessoas como nós são movidas por sonhos. - Se virou e começou a se afastar, abrindo os braços enquanto falava. - É a força que nos mantém seguindo em frente. E, por um acaso do destino, nossos sonhos se entrecruzaram, pequeno Dalan. 

 - O quê.... o quê você quer? - Perguntou o rapaz, se agitando. - Pra quê nos resgatar? Pra quê atacar a Aurora e tentar manipular o prefeito de Helleon? Pra quê se vender para demônios? Pra quê usar magia proibida e criar uma fortaleza flutuante no meio do mar? - Agora segurava com mais força as pontas do bidente. - O QUE QUER AFINAL, DESAAD? 

 O homem olhou para trás, o rosto de repente impassível. - A mesma coisa que você quer. - Disse, o manto roxo e prateado cobrindo suas costas. - Resgatar Gamora.

AURORA
CAPÍTULO 46: O BRILHO MAIS FORTE

 - O... o quê? - Perguntou o garoto. Não podia acreditar no que estava ouvindo.

 - Você sabe! Resgatar sua casa! - Ele se agachou, encarando o outro com olhos bastante abertos e animados. - Acredite, eu descobri o que tinha acontecido por sorte. Depois de nosso... desencontro, me recolhi para descristalizar meus companheiros. Tive de reformar os mantos deles, e foi quando percebi algo estranho. - Ele esperou Dalan dizer alguma coisa, em vão. - Bem, o que descobri foi que havia uma contra-magia estranha neles. Sabe, eu tinha feito diversas barreiras genéricas, porém poderosas, contra diversos feitiços da Aliança, mas tinha algo a mais do que simples contra-encantos de localização. Havia um que nunca tinha visto antes.

 - A partir daí, pesquisei. É algo bastante erudito e complexo, descobrir as especificações de uma magia a partir de um contra-encanto, mas afinal consegui. - Ele sorriu, satisfeito consigo mesmo. - O tal feitiço da Aliança era a pista que eu precisava. Sabia que eles estavam tentando esconder a localização de meu mestre, e tudo parecia se encaixar com o feitiço de apagar vestígios. Se chama Caelaredon, caso esteja interessado. - Dalan não estava. - Só que há uma peculiaridade nele. Pessoas com memórias fortes sobre o local produzem contra-encantos naturais, que vão se desgastando com o tempo. Procurei rapidamente por algo assim, e meus caminhos me levaram novamente à Aurora. O destino é realmente inexorável. - O garoto engoliu em seco. Tinha os colocado na mira do Culto Púrpura.

 - E então... nos sequestraram? - Perguntou.

 - Bem, depois de nossos confrontos, seria muito difícil simplesmente chegar e pedir por apoio. - Desaad se levantou, se dirigindo até uma janela. O vidro estava imundo, quase bloqueando a visão da rua, mas mesmo assim ele se prostrou à sua frente. - Portanto, precisava de um plano. Pesquisei as missões passadas da Aurora, e contratei a ajuda de Jones e seus Libertadores. Tinham a motivação que eu precisava. Só que eu não queria chamar a atenção em um ataque direto. 

 - Felizmente estávamos abençoados. Soubemos que o famoso Tom Burstin teria uma missão perto de Helleon, portanto o capturamos, ferido, e fizemos uma simples indução mental nele. Já deve ter esquecido disso, provavelmente, mas o mandamos convidar vocês para uma viagem de navio. Quem desconfiaria dele? - O homem parou de sorrir, algo inédito nos últimos minutos. - Peço desculpas pela... truculência, mas garanti que ninguém fosse morrer. 

 - E o que quer da gente aqui? - Ofegou Dalan. Era muito para ele absorver, principalmente na situação que estava, mas percebia o buraco que tinha metido os amigos.

 - Bem, vocês estão aqui pelo contra-encanto. - Respondeu o outro, levantando um dedo. - Estamos o replicando e absorvendo a cada segundo, e com isso poderemos localizar onde está Gamora. Veja, a Aliança parece ter feito um trabalho bem porco, e o arquipélago está entre nosso plano e o Mundo Oculto, então...

 - E pra quê sequestrar meus amigos? - Interrompeu o rapaz, agitado. - Vocês só precisavam de mim, não era? Pelo meu contra-feitiço natural ou o que quer que seja! Pra quê envolver o restante da Aurora?

 - ... você realmente não sabe no que se meteu quando entrou na guilda, não? - Se virou novamente para o garoto após alguns segundos de silêncio. Caminhou tranquilamente em sua direção, e segurou seu braço. A marca da Aurora estava entre seus dedos, as três curvas e a estrela brilhante. - Isso aqui não é uma simples identidade. É magia poderosa, que une cada um de vocês. Pela alma e pelo sangue. Com isso, o seu contra-encanto foi passado para seus companheiros assim que você foi marcado. - Ele voltou a sorrir. - Acredite, isso facilitou em muito nossa vida. Com mais de vocês, mais rápida é a absorção.

 - Então eu... - Era verdade, concluiu Dalan. - Eles... estão aqui por causa de mim. Estão arriscando suas vidas... por minha causa. - Não tinha mais forças para se livrar do bidente, e deixou as mãos caírem.

 - Bem, eu pedi a meus subordinados que não os matassem, mas há uma maneira mais fácil de garantir isso. - Ele retirou a arma do pescoço de Dalan com facilidade. O garoto se manteve parado, sem saber o que fazer. Ficou ainda mais desconcertado quando o adversário estendeu a mão para o ajudar a se levantar. Recusou a ajuda, mas ficou de pé mesmo assim. - Dalan, você pode pedir a seus amigos que desistam. Essa batalha é inútil. - Colocou a mão no ombro do rapaz. - Não vamos matá-los, apenas queremos que continuem nessa fortaleza. E depois disso... - Olhou fundo nos olhos do outro. - Você sabe o que vai acontecer.

 - Gamora... - Respondeu o membro da Aurora, olhando para baixo.

 - Sim! Você terá sua ilha de volta! Não era o que sonhou? - Desaad estava com o rosto animado, segurando firmemente o ombro do garoto. - Bem, a hora é agora! Garanta a sobrevivência de seus amigos e traga sua casa do limbo! - Respirou fundo, mal conseguindo conter a ansiedade. - E está tudo nas suas mãos. O que me diz?

 Dalan não tinha algo a dizer naquele momento. Se lembrou de sua casa, a vizinhança que morava bem perto da praia. Seus pai, sua mãe, a vida que levava. Acordar todos os dias para ver os barcos zarparem, o vento salgado sujando seus cabelos, o gosto do peixe de cada dia. A monotonia do vilarejo, a floresta perto de sua vila, as caminhadas solitárias que costumava dar.

 Foi naquela floresta que encontrara Adam, não? O encontro que mudou sua vida. Foi por causa dele que entrou na Aurora. Foi acolhido na guilda. Wieder, Koga, Sophie, Dominic... até Amanda. Seus novos companheiros estiveram sempre do seu lado. E agora parecia a chance de retribuir, pensou. Garantir que continuassem vivos. Por eles e por sua casa, por seu pai e sua mãe. Começou a levantar o queixo para falar com Desaad, mas seus olhos pararam na barra de seu manto. O mesmo manto roxo e prateado que causara tanto sofrimento. Se recordou de Sophie no leito do hospital, de Sasha ensanguentada no saguão da Aurora, do ataque ao Intrépida Saída. Fechou a mão em um punho trêmulo. 

 Sabia o que fazer. 

 Esticou a mão e ativou seus poderes, congelando o chão aos pés do adversário. Desaad olhou para baixo, surpreso, e o garoto chutou seu estômago. O homem foi jogado para trás, caindo entre os móveis. - Se acha que vou ignorar tudo o que fez conosco... - Começou Dalan, a raiva renovando suas forças. - Pode esquecer. Não vou deixar nada em suas mãos, nem meus amigos e nem Gamora! - Gritou as últimas palavras, e o outro se levantou de forma silenciosa.

 - Bem, é uma pena. - Disse, e em um ínfimo de segundo disparou para frente, jogando o rapaz contra a janela. Ele caiu na rua, coberto pelos cacos de vidro. Com um dos olhos, percebeu uma figura alta ao seu lado. - Vou ter que fazer isso do jeito mais difícil, então. Espero que saiba que está... - Foi impedido de falar por uma gigantesca mão de ronatto que o socou para dentro do edifício. Dalan se levantou debilmente, identificando as pessoas ao seu redor. Eram Wieder, Sasha e Sophie.

 - Vocês... - Começou a dizer, mas Sasha se adiantou. Era estranho vê-la de cabelo curto, mas não tinha tempo de perguntar o que aconteceu.

 - Esteja preparado, Wieder. Ele já deve voltar. - Ela e o golem ficaram de costas para o garoto, mirando o buraco pelo qual Desaad havia sumido. Sophie por sua vez foi até Dalan, limpando um ferimento em sua testa. Um de seus braços estava preso em uma tipoia de pano cinza, mas ele nem percebeu. 

 - Prestem atenção! - Tentou dizer ele, se afastando da companheira. - Ele nos sequestrou para--

 - Já sabemos. - Interrompeu Wieder, ainda de costas. - Estávamos aqui, procurando uma maneira de atacá-lo.

 - Então... vocês sabem o que aconteceu! - Disparou o garoto, o suor escorrendo por sua testa. - Que foram sequestrados por minha causa! Que estamos aqui por causa de mim! É tudo minha culpa! - Sasha virou a cabeça para o lado, os olhos em sua direção. Por um instante ela o encarou de forma gélida, fazendo o companheiro estremecer. No segundo seguinte, contudo, já estava olhando para frente.

 - Sophie, leve ele até o barco. Precisamos tirá-lo daqui o quanto antes. Se o Culto Púrpura o quer, estará mais seguro fora dessa fortaleza flutuante. - Sua voz era impassível, e a outra garota se adiantou para puxar o braço de Dalan, que protestou.

 - O quê? Vocês não estão entendendo! - Ele se livrou de Sophie, dando um passo à frente. - Vocês não tem mais que lutar por mim! Eu que causei tudo isso, não tem que--

 - CALE A BOCA! - Gritou Sasha, fazendo o outro se silenciar imediatamente. - Você acha que estamos de brincadeira aqui? Que fazer parte de uma guilda é tão simples assim para desistir de uma hora pra outra? O que foi que eu disse para você em nossa primeira missão, Dalan? - Ele abaixou a cabeça, tentando se lembrar, mas não houve tempo para isso. - Nós da Aurora protegemos uns aos outros. E você é nosso companheiro, algo que não vai ser quebrado apenas por sua vontade. Nunca duvide disso. - Ela esticou o queixo, o cabelo cortado balançando ao vento. - Já tivemos muitos membros desistindo nesses anos. Não ouse repeti-los.

 - Vamos. - Pediu Sophie, puxando seu braço. O garoto, ainda relutante, aceitou. Os dois correram por entre as ruelas, sumindo de vista, mas Sasha e Wieder continuaram onde estavam, iluminados pelos raios cada vez mais frequentes.

 - Isso não adiantará. - Disse uma voz nas trevas. Um relâmpago surgiu nos céus, iluminando o encapuzado Desaad no interior do edifício. - Não vão conseguir ganhar tempo o suficiente.

 - É o que você diz. - Retrucou Sasha. Seus ferimentos não a deixavam mover o braço direito, mas isso não a incomodava. - Agora, nos diga. Qual é o seu real motivo de trazer Gamora de volta?

 - E não nos venha com esse papo maleável que você estava tendo com Dalan. - Adicionou o anão.

 Desaad apenas sorriu, mas a garota tinha uma ideia. - Tem algo a ver com Zemopheus, não é? - Wieder a encarou com a boca entreaberta, e ela o olhou de volta. - Não podemos deixar ele sair daqui.

 - O sentimento é recíproco. - Interrompeu o homem, abrindo os braços. Sua capa esvoaçou, como que turbinada por uma força oculta. - Vocês... parecem saber demais, e não posso deixar que comuniquem isso àquele rapaz. Ainda anseio por sua ajuda. - Sasha e Wieder deram um passo para trás, sentindo um peso gélido descer pelo estômago. O líder do Culto Púrpura sorriu. - Agora... comecemos.

 Enquanto isso, Dalan e Sophie caminhavam pelas ruas negras, a garota puxando o braço do distraído companheiro. Finas gotas de chuva começavam a cair, formando pequenas poças na calçada e tornando o caminho acidentado. Chegaram a uma bifurcação, e a garota parou para tentar se localizar, agitada. O cabelo loiro e molhado brilhava, e o companheiro avistou por fim seu braço enrolado na tipoia. Isso aconteceu por sua causa, dizia silenciosamente. Dalan se virou para o outro lado, a culpa o corroendo por dentro.

 - Acho que devemos seguir pela orla, não? - Perguntou Sophie, se virando para o companheiro. Viu que ele estava de costas, e se aproximou. - Dalan, temos que correr.

 - Enquanto os outros estão lutando?! - Disparou o rapaz, cerrando os punhos. - Enquanto um monstro tenta trazer de volta minha ilha e eu viro as costas? Enquanto ele ameça todos vocês por minha culpa? - Se virou com raiva para a amiga, que deu um passo para trás, assustada. Ele a encarou furioso por alguns segundos, até que socou com força a parede mais próxima. Sua raiva diminuiu como um balão furado, e abaixou o queixo. - Eu não sei o que fazer. - Admitiu com a voz pesarosa. - Eu realmente não sei o que fazer.

 - Dalan... - Começou Sophie, se aproximando. - Eu...

 - Ora, ora, ora... - Disse uma voz conhecida atrás dela, e os dois viraram a cabeça naquela direção. Desaad estava na bifurcação. - Vejo que consegui alcançá-los.

 - Oh, céus. - Disse Sophie com as mãos na boca, e Dalan se adiantou.

 - O que fez com eles? - Perguntou o rapaz, e o outro sorriu.

 - Não se preocupe, estão vivos. Só que eu cansei de bancar o bonzinho. - Ele puxou o capuz, deixando os cabelos loiros à chuva. - Da próxima vez que você recusar minha proposta, um de seus amigos irá morrer. E adivinhe quem será? - Ele virou o rosto para Sophie, estreitando os olhos. - O que me diz agora?

 O rapaz também se virou para a companheira, que encarava o adversário com os olhos arregalados. Não tinha escolha. Respirou fundo e endureceu o queixo. - Desaad, eu... - Começou a andar pra frente, mas foi impedido. Sophie estendeu o braço sadio, bloqueando sua passagem. Ela tremia, mas mantinha o queixo erguido. Dalan tentou afastá-la. - Sophie, eu preciso ir. - Ela balançou negativamente a cabeça, nervosa demais para falar. O companheiro sentiu o desespero tomar conta de seu corpo. - Ele vai te matar! - Berrou, mas mesmo assim ela não se moveu. Se virou para ele, os grandes olhos verdes sérios como nunca tinha visto antes.

 - Dalan, eu... - Começou, o lábio ligeiramente trêmulo. - Por minha vida inteira, eu deixei que os outros me protegessem. Ninguém... tinha confiança em mim. Até você chegar. - Ela abaixou minimamente o braço, se virando para frente. - Não posso deixar você se render assim. Hoje sou eu quem vai te proteger.

 - Sophie... - Tentava dizer o rapaz, mas infelizmente não estavam sozinhos.

 - Que assim seja. - Avisou o líder do Culto Púrpura, disparando para frente. Sophie empurrou Dalan para o lado, mas ele não era o alvo. Desaad agarrou seu pescoço e a levou para o outro lado do beco. Levantou-a, tirando seus pés do chão.

 - SOPHIE! - Gritou Dalan, se levantando e correndo para frente. O adversário atirou a capa para o alto, revelando o traje branco que usava por baixo. O manto se agitou e voou para o garoto, enrolando em suas pernas e o derrubando. Seu rosto bateu em uma poça, espirrando água para os lados. - SOLTA ELA! - Gritou, levantando a cabeça.

 Desaad não pareceu escutá-lo, jogando o corpo da garota com força no chão. Mesmo longe, Dalan conseguiu ver o sangue espirrando contra a chuva. - SOPHIE! - Tentou congelar o manto que o prendia, mas não conseguia. Desesperado, olhou para os lados em busca de alguma coisa, qualquer coisa. Enquanto isso, o homem pisava no peito de Sophie, e o barulho das costelas partidas rompeu o ar. - PARA COM ISSO! EU ME RENDO, FAÇO O QUE VOCÊ QUISER, MAS PARA COM ISSO! - Percebeu que chorava, as lágrimas se misturando às gotas de chuva. Desaad o encarou, e ele pode ver seus olhos. Estavam tomados pela loucura mais uma vez, e seu coração pareceu parar.

 - Já te dei chances demais, moleque. - Levantou novamente a membro da Aurora, desta vez inerte e ensanguentada. - Acho que um pouco de coerção vai te ajudar. - Fechou a mão em palma, e moveu-a na direção do coração da garota. Dalan gritou, e de repente o mundo pareceu explodir.

 Pois uma parede de energia verde acertava Desaad com força, fazendo-o largar sua presa e ser atirado para longe.

 - DESAAD! - Gritava uma voz nova, vinda do alto. O garoto levantou a cabeça e viu uma elfa curvilínea descer do segundo andar de um prédio próximo. Ela vestia o manto roxo e prata do Culto Púrpura, e parou à sua frente. O garoto tremeu um pouco, sem saber o que fazer. A mulher parou ao seu lado, e conjurou um feixe verde. Fechou os olhos, temendo um ataque, mas ela passou por ele e seguiu adiante na rua. - VOCÊ ME USOU! - Gritava a cada passo. Dalan se virou para vê-la sair, ainda sem entender nada.

 - Dalan, aqui! - Essa era uma voz conhecida. Amanda estava do outro lado do beco, ajoelhada ao lado de Sophie. - Preciso de ajuda! - Pediu, e ele correu em sua direção. O rapaz olhou para suas pernas, e percebeu que o manto havia sumido.

 Correu até as companheiras. - Ela está...? -  Sophie estava com o rosto coberto de sangue, e a visão fez o ar sair de seu corpo.

 - Ela está viva. - Tranquilizou a outra garota, sentada de uma forma estranha no chão molhado. Sua perna direita estava estranhamente dobrada na altura do joelho, mas pareceu ignorar. - Só que temos de tirá-la daqui. Agora.

 - O que está aconte... - Naquele momento um estouro surgiu da rua atrás deles. Se viraram, vendo que Desaad havia sido derrubado por Alana.

 - VOCÊ NÃO VAI ME DIZER NADA? - Gritava a elfa, lançando mais um golpe de energia no ex-líder. - ME RESPONDA! VOCÊ REALMENTE ME USOU POR TODOS ESSE ANOS? DESAAD!

 - Chega. - Disse o homem. Fez um gesto com a mão, e seu manto surgiu da esquina, se enrolando ao redor do corpo da mulher. O próprio manto dela também se agitou, mantendo-a imóvel.

 - Alana! - Amanda já estava se levantando, mas Desaad se virou para os membros da Aurora. Seu olho brilhou em amarelo, e os dois ficaram no chão, paralisados por um medo colossal. O temor não os deixava pensar, apenas observar a cena à frente.

 Um brilho verde surgiu do corpo da elfa, e ela rasgou os mantos com uma explosão de energia, deixando apenas seu vestido preto à mercê da chuva. Se virou para seu adversário, o olhar repleto de fúria. Esticou a mão, mas ele se aproximou com tanta velocidade que estava à sua frente em um piscar de olhos. - Você ousa me trair. - Agarrou seu braço, dobrando-o para baixo. Em um instante o osso do antebraço se partiu em dois, surgindo em uma cascata de sangue. Alana gritou, e embora Dalan e Amanda quisessem muito desviar o olhar, não conseguiam. Apenas observavam.

 A elfa caiu de joelhos, e Desaad a chutou no peito com tanta força que ela cuspiu sangue quando acertou a parede, formando uma pequena cratera. - Vou lhe mostrar o que acontece com quem tem a audácia me trair. - Ele parecia mais ameaçador do que nunca, a fúria fria o controlando por inteiro. Alana tentou levantar o outro braço para atacar, mas o homem pisou em seu membro. Era difícil enxergar o que acontecera pelo ponto de vista dos membros da Aurora, mas ouviram alguma coisa cair na água, além do novo jorro de sangue. Alana gritou mais alto.

 - Quer saber o que eu fiz com você? - Perguntou ele, dando-lhe um soco no estômago. - Pois bem, vamos começar. Fui eu quem matou sua família. - Uma joelhada no rosto, e dois dentes voaram. -Seus pais haviam descoberto que eu trabalhava com Zaulin, e eu fui à sua casa naquela noite para matar todos vocês. - O nariz se quebrou com uma cotovelada. - Só que eles me contaram sobre você. Sobre seus poderes. PEDIRAM PARA QUE EU TE LEVASSE AO INVÉS DE MATÁ-LOS! - Dalan e Amanda tentaram ao máximo fazer alguma coisa, qualquer coisa, nem que fosse desviar o olhar daquele espancamento brutal. Em vão. - Só que eu decidi que não. Poderia usá-la como um plano reserva. - Ele a agarrou pelo pescoço, jogando-a contra a parede. Alana cuspiu, muito mais sangue que saliva. Havia um corte em sua testa, e o rosto estava empapado do líquido vermelho.

 O homem segurou seu rosto, olhando bem fundo em seus olhos. Havia um verde opaco ao redor das órbitas, e ele franziu o cenho. - E você acabou usando o Indramara hoje, não? Tanto esforço para nada. Nem sequer derrotou sua oponente. Bem... - Ele se aproximou, tão perto que manchou seu rosto com o sangue. - Sorte que ninguém consegue ativar isso duas vezes ao dia, não?

 - Seu... - Alana chorava de raiva, e chutou o adversário, sem efeito. Ele fechou as mãos em palma, sorrindo uma última vez.

 - Sabe o melhor de tudo? - Perguntou, sem esperar resposta. - O golpe que eu te ensinei? Foi o mesmo que usei para matar seus pais. - Houve apenas tempo da elfa arregalar os olhos antes dos dedos de Desaad eviscerarem seu peito, O coração foi partido em dois, o golpe tão forte que atravessou a coluna. Ela nem mesmo mudou a expressão, e o brilho da vida se esvaiu de seus olhos. O líder do Culto Púrpura a deixou cair, seu corpo se esparramando no chão. Ele se virou de volta para os membros da Aurora, o sangue nas vestes brancas sendo lavado pela chuva. - Agora, vocês.

 Amanda foi a primeira a se recuperar do feitiço. Ela imediatamente conjurou seus poderes, jogando água nos olhos do adversário. Ele parou para se limpar, gerando míseros segundos que teriam de servir. - Anda! - Gritou por entre os dentes para Dalan, agarrando seu colarinho. Ele também pareceu acordar, virando o corpo para trás. Agarrou a desacordada Sophie e disparou pelo beco, os braços de Amanda ao redor de seu corpo. Ela mancava pela perna quebrada, mas procurava acompanhar o companheiro.

 Ouviram passos na poça atrás deles. A garota olhou para frente, vendo a extensa rua adiante. Puxou o rapaz pelo pescoço e se jogaram através de uma porta adjacente, entrando em um apertado cômodo escuro. - Anda, anda. - Pediu desesperada, e os dois correram para dentro do edifício. Assim que saíram daquele aposento, ouviram uma porta se abrir com violência.

 Decidiram entrar em um aposento à direita, procurando voltar para a rua. Assim que fecharam a porta, no entanto, perceberam o beco sem saída. Não havia janelas.

 - Ah, não... - Disse baixinho enquanto que Dalan depositava Sophie em uma cama. Ele ficou de costas para ela, os punhos cerrados enquanto que a outra tentava pensar em alguma saída. Já era tarde demais para darem a volta, e tudo que lhes restava era a esperança de que Desaad não os encontrasse. Não parecia provável.

 Pense Amanda, pense, urgiu para si mesma. Era apenas ela e Dalan, sozinhos contra um monstro que parecia imbatível. Não podiam esperar por nenhum apoio. O único que tinham era Alana, e ela fora destroçada. Oh, céus, Alana. O choque de sua morte finalmente a atingiu, e ela quase vomitou. Lágrimas caíram de seu rosto enquanto se recuperava com a mão na boca. Se ao menos ela tivesse conseguido alcançar o Indramara novamente, talvez...

 Espera... é isso. A garota abriu os olhos, a mente em polvorosa. A única forma de lutar contra Desaad era atingir o Indramara. Mas como? Precisariam de um choque emocional bastante forte e temperado com uma extrema vontade de lutar para isso, e ela não parecia a melhor candidata para tal. Não era assim que as coisas a atingiam. Sophie ainda estava desmaiada, o que a deixava apenas com uma opção. Dalan.

 Ela se aproximou, mancando, pensando em todos os momentos que havia passado com o garoto. Em algum lugar ali, deveria haver alguma coisa que pudesse trabalhar. - Dalan... - Sibilou, as duas mãos em punho apoiadas nos ombros do companheiro.

 - Amanda? - Perguntou ele, mas foi ignorado.

 - Eu sei que... - Ela engoliu em seco antes de continuar. - Desde que você saiu de Gamora, as coisas ficaram meio difíceis. Aquele lance de não saber como se portar com as outras pessoas, a pressão de ter que salvar sua ilha sozinho... eu sei. Sei de tudo. - Apoiou a testa no peito do outro. - Toda essa frustração deve ser horrível. Eu tentei te ajudar do meu jeito, mas... - Sorriu. - Mas hoje tenho um conselho diferente.

 - O quê? - Perguntou o rapaz, e a garota levantou a cabeça para olhá-lo nos olhos.

 - Solte tudo que está dentro de você, Dalan. Tudo que tem guardado desde que Gamora sumiu até hoje. - Não chegou a piscar, o castanho se encontrando com o negro. - Alana me contou do plano de Desaad. Sei que deve ser... terrível para você, mas não tente mais guardar nada. Por favor. Não hoje.

 - Amanda, eu... não estou entendendo. - Ah, é claro que ele não entendia. Típico de Dalan. Ela voltou a encostar sua testa na roupa cinza dele, pensando. Só lhe restava uma opção, concluiu enquanto encarava o chão com os olhos arregalados de tanto pensar.

 - Me desculpa, Dalan. - Soltou, antes de se apoiar na ponta do pé sadio e beijá-lo com toda a sua força. Suas mãos agarravam sua camisa, puxando-a para si. Beijou-o de forma demorada, intensa, depositando toda a sua esperança nele. Esperou ser retribuída.

 Ouviu a porta atrás de si se abrindo, e abaixou a cabeça. - Dalan, eu... - Naquele momento algo passou pela suas costas, soltando um som asqueroso. Sentiu o sangue quente na garganta, as mãos perderem a força e largarem a camisa do outro. Olhou para baixo, trêmula. Havia uma mão a atravessando, um pouco ao lado do umbigo, completamente ensanguentada. Conseguiu soltar um som abafado antes dela sair de seu corpo, tirando-lhe o apoio que descobriu que necessitava. Caiu nos braços do companheiro, sem conseguir se levantar.

 Dalan enquanto isso estava apenas com os olhos arregalados, a mente em choque. Ele olhou para a garota que segurava inconscientemente, o sangue pingando no chão mais abaixo. Sua cabeça estava em branco, mas havia um pequeno pensamento, bem no fundo, que conseguia ser ouvido.

Amanda?

 - Essa é a primeira. - Disse Desaad, limpando a mão. - Se não quiser que isso continue, peça para seus amigos se renderem. Ouviu? - Só que Dalan não estava escutando. Amanda perdeu as forças nas pernas, e caiu em cima dele. O rapaz se ajoelhou, sem conseguir acreditar no que estava acontecendo. A cabeça dela estava em seu ombro, e ele passou a mão por seus cabelos. Sentiu as lágrimas caírem, e virou o rosto dela para olhar em seus olhos. Não conseguia ver um brilho.

A-Amanda?

- O que me diz, garoto? - O líder do Culto Púrpura, segurou seu queixo, tentando forçá-lo para cima. - Quer continuar matando seus amigos? Ou se render de uma vez?

 Dalan começou a tremer violentamente, levantando a cabeça de forma lenta. Ele encarou Desaad com um olhar completamente preenchido de ódio, tão forte que poderia abrir um rombo no ar.

 E de repente, um minúsculo relâmpago azul faiscou neles.

 Desaad foi catapultado para fora do edifício, atravessando duas paredes e caindo no centro de uma praça. Ele limpou o sangue da boca, assustado, e percebeu algo estranho em seu braço. Era gelo. Olhou para o buraco de onde tinha saído, onde seu adversário estava prostrado.

 Ele estava segurando Amanda nos braços, a chuva fina os envolvendo. Seus olhos estavam cobertos por um azul-claro, e pequenos raios saiam deles de vez ocasionalmente. O líder do Culto Púrpura sentiu algo estranho passar pelo estômago. Era medo.

 Pois Dalan havia alcançado o Indramara.